30 agosto 2006

PAU-BRASIL

...
O jovem riu-se e começou a desapertar o colar que usava ao pescoço. Desenfiou, então, uma das conchas, voltou a apertar o colar e lançou para a areia a conta retirada.
- Que estás a fazer? - perguntou Colombe.
- Hoje é dia de lua cheia - respondeu o jovem, com toda a naturalidade -, tenho de tirar uma conta do meu colar.
- Karaya é um prisioneiro - esclareceu um dos guerreiros, rindo-se. - Em cada lua, uma conta a menos; quando se acabarem as contas comemo-lo.
...
Pau-Brasil, Jean-Christophe Rufin


Em 1555, à frente de uma armada de 3 navios e 600 homens, entre soldados e colonos, Nicolas Durand de Villegaignon, Vice-almirante da Normandia, parte do Porto Francês de Le Havre rumo ao Brasil. Tem um sonho: fundar uma colónia na América do Sul – a França Antárctica.
Após uma difícil viagem, a armada penetrou na baía de Guanabara, aportou a uma das suas ilhas e aí construiu um forte: Forte Coligny em honra de Gaspar de Coligny, patrocinador da empresa.
Fruto das privações dos colonos, inflamadas pelo carácter rude e autoritário de Villegaignon, a colónia começa a passar por dificuldades. Dois anos depois da chegada um novo carregamento de colonos chega da Europa, essencialmente Calvinistas Suíços.
A colónia é agora uma babel de tendências religiosas: há católicos, luteranos, calvinistas, huguenotes e, até, anabaptistas. Cada grupo vigiava todos os outros que considerava hostis. Estas lutas internas iam desviando os residentes do essencial e a construção da colónia ia sendo negligenciada.
O sonho da França Antárctica não durou mais do que uma dúzia de anos. Em 1567, já Villegaignon tinha regressado a França, os Franceses são, definitivamente, expulsos por Mem de Sá, com a ajuda de seu sobrinho Estácio de Sá, fundador da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, que viria a perder a vida no assalto.
Baseado neste facto histórico pouco conhecido Jean-Christiphe Rufin escreveu Pau-Brasil.
Guiados por duas das crianças embarcadas na expedição para aprenderem a língua dos selvagens e, deste modo, servirem de intérpretes, entre os autóctones e os colonizadores, somos levados a viver uma aventura extraordinária por terras desconhecidas.
Just, o mais velho, chegará a braço direito de Villegagnon depois de iniciado por este na nobre arte da guerra. Colombe, a mais nova, que embarcará disfarçada de rapaz por ser absolutamente proibido o embarque de mulheres, tornar-se-á, por vontade própria, um elemento de uma tribo de canibais: “gostavam dos filhos, dos pais, da tribo, do sol e das árvores favoráveis, gostavam da água das cascatas e do vento tépido das praias, gostavam da terra que satisfaz as necessidades humanas, gostavam da noite e do dia, do fogo e do sal, da avestruz e do tapir. E, nesta trama apertada de amor e medo, não estava previsto que um só ser se apoderasse de tudo em seu benefício”.
Pelo meio assistimos à penosa travessia do Atlântico, à dolorosa construção do Forte Coligny, às intestinas lutas entre facções religiosas, às crueldades de Villegaignon para impor a lei e a ordem na colónia, ao penoso encontro de civilizações até ao desfecho, ainda que um tanto cinematográfico, em que os Portugueses, finalmente, expulsam os Franceses.
Jean-Christiphe Rufin escreveu um belo romance. Em 2001, Pau-Brasil, seria agraciado com o Prémio Goncourt.

29 agosto 2006

BASTA OLHAR O CÉU

A propósito de um post que aqui deixei, onde dava conta da desclassificação de Plutão, o amigo Chico Rocha, dizia que, embora não visse o que pudesse mudar na ciência com esta decisão, não tinha dúvidas que deste modo o Universo perderia um pouco de seu romantismo.
Amigo Xico, não desanime! Desclassifiquem o que quer que seja que a nós basta-nos deitar de barriga para o ar, olhar o céu e sonhar. E olhe que nisso somos bons!
A este propósito vou recordar-lhe um delicioso diálogo do Rei Leão da Disney, entre o Simba, o Timon e o Pumba.
Uma noite sem nuvens, estavam os três deitados, olhando um céu maravilhoso. Com aquele ar sonhador que por vezes mostrava, diz o Pumba:
- Timon...
- Que é?
- Alguma vez imaginaste o que serão aqueles pontos brilhantes lá em cima?
- Pumba, eu não imagino, eu sei!
- Ah! E o que são?
- São pirilampos! Pirilampos que ficaram colados àquela coisa grande azul escura.
- Ah!... Sempre pensei que fossem bolas de gás a arder a milhões de quilómetros daqui...
- Pumba, p’ra ti, tudo é gás.
- Simba, o que é que tu achas?
- Bom, eu não sei...
- Vamos, fala, fala, fala, Simba. Vá, nós já dissemos. Por favor.
- Alguém me disse uma vez: «do alto das estrelas os grandes reis do passado contemplam-nos».
- A sério? Queres dizer que um bando de reis mortos está a olhar lá de cima?

Pois é, amigo Xico, deitados de costas, debaixo de um céu estrelado, até de olhos fechados conseguimos ver pirilampos como o Timon ou bolas de gás como o Pumba ou reis do passado como o Simba…
Basta querermos!

26 agosto 2006

O CÃO DO JOÃO MALHEIRO

De vez em quando a comunidade científica tem a delicadeza de nos assombrar com as mais inverosímeis descobertas.
Alertado por Lloyd Green, um agricultor do condado de Somerset, no sudoeste de Inglaterra, que jurava a pés juntos que o linguajar das sua amadas vaquinhas tinha o sotaque da região “ – Eu passo muito tempo com as minhas vacas, e, definitivamente, elas mugem com um sotaque de Somerset”, dizia –, Jonh Wells, especialista em fonética da Universidade de Londres, debruçou-se sobre o assunto.
O que descobriu deixou meio mundo boquiaberto: diz ele que, em pequenas populações, como rebanhos, é possível encontrar variações no dialecto que são mais afectadas pelos vizinhos mais próximos da mesma espécie. Mais disse que já foram identificadas diferenças no gorjeio de pássaros da mesma espécie mas de diferentes regiões.
Tudo isto me trouxe à memória um apreciador de vinhos que um dia conheci. Bebia um copo de verde branco, dava um estalido com a língua, e anunciava solenemente: “- Este é da encosta de Perre!”. Bebia outro, outro estalido e: “- Terras baixas de Bertiandos!”. Um terceiro: “- Veiga de Mazarefes!”. Lá chegará o dia em que bastará a um boieiro ouvir um mugido para que possa dizer: “- Esta é da vacaria do Ernesto!” ou “ – Esta é do paul de baixo! ” ou então: “- Eh pá, esta não é de cá!”.
Lloyd Green, o nosso lavrador de Somerset disse mais: “- Acontece o mesmo com os cães; quanto mais perto estamos deles, mais facilmente ficam com a nossa pronúncia”.
O que eu daria para ouvir o cão do João Malheiro!

25 agosto 2006

SERMÃO DE S. JERÓNIMO AOS PEIXES

Há duas noites o Jerónimo foi à pesca. Chegou, ainda cedo, com indumentária apropriada: fato e gravata. Como não podia deixar de ser os urubus da imprensa precederam-no. Mas Jerónimo é um rapaz que se dá bem com estes profissionais. Como não tem nada a esconder e muitos recados a enviar serve-se deles. Então, de peito feito e com aquele semblante alegre que põe em Pirescoxe quando encontra os parceiros da sueca, caminha de encontro ao batalhão da informação. Mentalmente, vai revendo as notas que tinha preparado para o momento: a sardinha, a cavala, uma ou outra dourada, o besugo, o robalo, se viesse a talhe de foice – que bela palavra, foice – falaria também das belas carpas que costumava pescar com os amigos nas barragens do Alentejo… só não conseguia lembrar-se por que carga d’água tinha apontado o tubarão, mas, adiante...
- Senhor Secretário-geral pode fazer um comentário sobre o pedido de demissão do Presidente Carlos Sousa?
Jerónimo de Sousa emudeceu – “Onde é que este gajo foi buscar esta pergunta? Vou à sardinha e ele a perguntar-me sobre arenques.” No compasso de espera que se seguiu, Jerónimo, mentalmente, abandonou as notas que tão apropriadas eram à situação e pensou no sermão de Santo António aos peixes. Com aquele semblante estudado com que os políticos atacam os momentos dramáticos atirou:
- Sabe, por vezes os melhores homens não são os homens melhores.
Não me recordo se a conversa com os jornalistas continuou ou terminou logo ali. Esta linguagem hermética que os políticos constantemente utilizam deixa-me sem vontade de continuar a ouvi-los. Invariavelmente, esta gente fala apenas para meia dúzia de iniciados que normalmente os acompanham: pelo menos é o que se depreende dos seus sorrisinhos aquiescentes quando ouvem as tiradas do chefe. E nós, a arraia-miúda, os tontos, os que, religiosamente, ligamos a televisão às oito da noite, olhamos invejosamente para a sapiência espelhada nos seus rostos e pensamos: “- Porque é que o Criador não nos apetrechou também com dois palmos de testa como àqueles senhores?”

24 agosto 2006

DE CAVALO PARA BURRO

O Astrónomo americano Clyde Tombaugh nasceu a 4 de Fevereiro de 1906 em Streator, Illinois. A sua coroa de glória ganhou-a em Fevereiro de 1930, tinha então 24 anos, quando descobriu e fotografou um corpo celeste que viria a ser o nono planeta do Sistema Solar. Seria baptizado com o nome de Plutão. A sua órbita, para lá de Neptuno, demora 248 anos a percorrer.
Quase a completar 91 anos de idade, a 17 de Janeiro de 1997, Tombaugh, morreu em Las Cruces, Novo México. A sua descoberta pouco lhe sobreviveu.
Reunida em Praga, a fina-flor da astronomia mundial, embora ainda que não a uma só voz, decidiu desclassificar Plutão. A sua insignificância, em termos de tamanho, não lhe permitia ser um planeta. Pertence agora à categoria a que já pertenciam o calhau Ceres, perdido na cintura de asteróides entre Marte e Júpiter ou o enigmático 2003UB313, um corpo celeste que “erra” pelo espaço para além da órbita de Plutão, demorando 560 anos a dar uma volta ao Sol.
As nossas criancinhas têm, agora, menos uma palavra na lenga-lenga: Mercúrio, Vénus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Neptuno!

23 agosto 2006

CAMINHADA EM PAISAGEM PROTEGIDA

Ontem, a família arrastou-me para as Lagoas de Bertiandos, ou, para utilizar o seu nome na forma mais pomposa: Paisagem Protegida das Lagoas de Bertiandos e S. Pedro de Arcos. A zona fica na margem direita do rio Lima, já muito próximo da Vila de Ponte de Lima.
Lá chegados toca a escolher o percurso. Como ninguém quisesse dar sinal de fraco, escolhemos o percurso IV, uma jornada com uns extensos 7,5 km.
Como na recepção nos dissessem que os percursos estavam devidamente assinalados, prescindimos de um mapa. Fizemos mal. Pouco ainda tínhamos caminhado e o trilho IV chegava abruptamente a uma estrada camarária. Ficamos sem saber por onde seguir – sabê-lo-íamos mais tarde já no carro e de regresso – pelo que tomamos a decisão que se nos afigurou mais sensata nesta situação: voltamos para trás. Recuamos até uma bifurcação e, entre o I, o II e o III lá fomos andando. Sem saber bem qual o percurso que seguíamos em cada momento, lá regressamos ao ponto de partida.
Confesso que não me esforcei grandemente mas também só vi um sardão, uma rã, três borboletas e meia dúzia de gafanhotos. Ah, e também ouvi alguns chilreios, não conseguindo, no entanto, descortinar a origem.
Embora o tempo esteja quente e, consequentemente, a paisagem, embora húmida, se ressinta disso, o passeio é agradável e recomenda-se. Podiam, é certo, mondar alguns eucaliptos e podar os salgueiros que nos obrigam, não raras vezes, a dobrar a espinha nos passadiços de madeira. E já agora, rever a informação sobre os percursos.Já combinamos voltar às Lagoas mas só depois das primeiras chuvas, já bem entrados no Outono. Nessa altura prometo estar mais atento à natureza e tentar descortinar, mesmo que fugidiamente, qualquer um dos exemplares que na recepção nos dizem passear por aquelas bandas.

EU, PECADOR, ME CONFESSO!

Há uns tempos, a minha amiga Helena, enviou-me por correio electrónico aquilo que seria, talvez na óptica de uma mulher, o banho de uma dama e o banho de um cavalheiro. Confesso que raramente me terei rido tanto ao ler seja o que fosse. Partilhei esse texto com alguns amigos e pensei ficar por aí. Hoje, porém, encorajado pelo amigo Pedro Nelito, resolvi partilhar essa pérola literária com todos os que a quiserem aceitar. Espero, apenas, que ninguém fique chocado com a sua leitura. Então aqui vai:

O BANHO DA MULHER

1. Tira a roupa delicadamente e coloca-a no cesto da roupa suja tendo atenção para não misturar peças de cores diferentes.

2. Vai para a casa de banho embrulhada num roupão. Se vê o marido/namorado, cobre-se bem e dá uma corrida até à casa de banho.

3. Pára em frente ao espelho e observa a sua figura. Espeta a barriga para se poder queixar do "gorda" que está.

4. Entra para a banheira. Pega nas luvas da cara, dos braços, das pernas, das costas e a pedra-pomes.

5. Lava o cabelo com champô de abacate/mel com 83 vitaminas.

6. Volta a lavar o cabelo com o champô de abacate/mel com 83 vitaminas.

7. Põe acondicionador para o cabelo de abacate/mel com 83 vitaminas e espera 15 minutos.

8. Lava a cara com uma mistura de pêssego durante 10 minutos, até que fique vermelha.

9. Lava o resto do corpo com sabonete de nozes e morangos, especial para corpo.

10. Retira o acondicionador da cabeça (este processo leva cerca de 10 minutos porque é preciso assegurar-se que se retirou todo o acondicionador).

11. Corta os pelos das axilas e das pernas. Considera barbear também a zona do bikini mas opta por depilá-la.

12. Grita desesperada quando o marido/namorado puxa o autoclismo e a água perde pressão.

13. Fecha a água do duche.

14. Escorre todas as partes molhadas dentro da banheira.

15. Sai da banheira e seca-se com um toalhão do tamanho de África.

16. Põe uma toalha super absorvente na cabeça.

17. Pesquisa todo o corpo à procura de pontos negros e ataca-os com as unhas ou uma pinça.

18. Regressa ao quarto embrulhada no roupão. Se vê o marido/namorado, cobre-se bem e dá uma corrida até ao quarto.

19. Demora mais uma hora e meia vestindo-se.


O BANHO DO HOMEM

1. Coça os tomates, enquanto decide se toma banho ou não.

2. Diz "Que porra!", dá um peido e, sentado na cama, despe-se atirando a roupa para o chão.

3. Em cuecas vai para a casa de banho. Se vê a mulher/namorada, mostra-lhe a pila e imita o som do elefante.

4. Pára em frente ao espelho para se observar. Encolhe a barriga, admira o tamanho da pila ao espelho, coça os tomates e cheira as mãos antes de tomar banho.

5. Entra na banheira.

6. Lava a cara com sabão azul e branco.

7. Lava a cabeça com sabão azul e branco.

8. Faz um penteado "punk“.

9. Abre a cortina do duche para se ver ao espelho com o penteado "punk“.

10. Farta-se de rir com o barulho que faz dar um peido dentro da banheira

11. Lava as partes privadas e os arredores com sabão azul e branco.

12. Lava o rabo com sabão azul e branco e deixa-o cheio de pêlos.

13. Mija dentro do duche, tentando acertar no ralo.

14. Apercebe-se que o chão está encharcado porque deixou a cortina de fora quando se foi ver ao espelho.

15. Sai do duche e semi-enxuga-se.

16. Vê-se outra vez ao espelho, fazendo músculos e vendo o tamanho da pila.

17. Deixa a cortina aberta, o sabão no chão e o tapete molhado.

18. Deixa a luz da casa de banho acesa.

19. Regressa ao quarto com uma toalha à cintura. Se vê a mulher/namorada, mostra-lhe a pila e volta a imitar o som do elefante.

20. Atira a toalha molhada para a cama e veste-se em 2 minutos.

21 agosto 2006

JOE ROSENTHAL

Em Fevereiro de 1945, trinta mil fuzileiros do exército dos Estados Unidos da América desembarcam nas costas de Iwo Jima, uma ilha Japonesa, defendida por vinte mil soldados. A luta que se segue é encarniçada. No final contam-se seis mil baixas do lado dos Americanas e a quase totalidade dos sitiados. Depois da vitória, seis fuzileiros sobem o monte Suribachi e erguem uma bandeira americana simbolizando a vitória. O fotógrafo Joe Rosenthal estava lá e registou esse momento. A fotografia ganhou o prémio Pulitzer e tornar-se-ia numa das mais conhecidas da segunda Guerra Mundial e de todo o séc. XX, servindo de modelo a uma escultura para o monumento da Infantaria dos EUA no Cemitério Nacional de Arlington, inaugurado em 1954.
Embora os seus detractores sempre o tenham acusado de ter forjado a fotografia, Rosenthal sempre se recusou a aceitar a acusação, afirmando que ela foi o resultado de um momento único não planeado. Numa entrevista, em 1995, explicou que a fotografia foi tirada na segunda vez que os soldados subiram ao monte já que da primeira os oficiais acharam que as dimensões da bandeira eram reduzidas.
Joe Rosenthal nasceu a 9 de Outubro de 1911 em Washington. Durante a Grande Depressão mudou-se para S. Francisco começando a trabalhar no Newspaper Enterprise Association em 1930, seguindo-se o San Francisco News, a Associeted Press – para a qual tirou a famosa fotografia – e, finalmente, o San Francisco Chronicle até se reformar.
Ontem, 20 de Outubro, aos 94 anos, enquanto dormia no asilo para idosos de Novato, Califórnia, Joe Rosenthal morreu. Sua filha Annne diria: “Ele era um homem bom e honesto, uma pessoa realmente íntegra”.
Apesar dos críticos, dos cépticos e dos invejosos “Raising the Flag on Iwo Jima” continuará a ser um ícone.

20 agosto 2006

NÃO FOI POR INVEJA QUE FIQUEI CHORANDO...

Um dia, se for a Marraquexe, reconstituirei – tentarei fazê-lo, pelo menos – os passos de Elias Canetti. Hei-de ir ao mercado de camelos junto do muro de Babel-Khemis, hei-de visitar os souks e apreciar as especiarias e os artigos de couro e os tapetes e as ourivesarias e os artigos de cobre e as lãs coloridas e os cestos e as cordas e os mil cheiros e as mil cores e os mil pregões, hei-de ir a Mellah e a Berrima, hei-de procurar os contadores de histórias e os escribas, hei-de apreciar os contrastes da grande praça Djema el Fna no centro da cidade e hei-de escolher um pão, o melhor que a fila de mulheres tenha para vender. Por fim, rumarei a Sul em direcção às montanhas do Atlas procurando Aghmat, a cerca de uma trintena de quilómetros de Marraquexe, para visitar a tumba de Muhammad ibn 'Abbad al-Mu'tamid, o Rei-Poeta de Sevilha para lhe prestar a minha homenagem.
Al-Mu'tamid, filho do rei Al-Mutadid, nasceu em Beja em 1040. Aos treze anos era já governador de Silves, nomeado após ter comandado uma expedição militar que esmagou uma rebelião na cidade. É nesta altura que conhece Ibn Ammar um poeta que terá nascido na actual Estômbar. Entre os dois cresce, então, uma profunda relação de amizade que, por vezes, se especula ser de natureza homossexual. O seu pai tentará, enquanto viver, afastar o filho daquele que pensa ser uma companhia tão nefasta quanto perigosa para o seu herdeiro.
Com a morte do pai em 1069, Al-Mu'tamid sucede-lhe como rei da taifa de Sevilha. Uma das primeiras decisões que toma é nomear Ibn Ammar, o seu grande amigo, vizir do reino. Este ajuda-o na expansão das suas possessões com a conquista de Múrcia, praça que lhe será entregue para governar.
Por esta altura, a corte de Al-Mu'tamid, fervilha de arte e ciência. Lá se reunem, entre outros, o astrónomo Al-Zarqali, o geógrafo Al-Bakri e os poetas Ibn Hamdis, Ibn Al-Labbana e Ibn Zaydun.
Ibn Ammar, além de brilhante estratego, excelente diplomata e magnífico poeta, era excepcionalmente ambicioso. Muitas vezes conspirou contra o seu senhor, usando, por vezes, a poesia para o ridicularizar, mas a amizade que Al-Mu'tamid sentia pelo seu vizir era tão profunda que, em vez de ficar magoado com a mensagem dos poemas, preferia destacar as qualidades poéticas dos escritos do amigo. Porém, anos depois, acabaria por mandar prendê-lo e, num acesso de raiva, entraria na sua cela e tirar-lhe-ia a vida.
Por esta altura, o Rei Afonso VI de Leão e Castela pressionava o Al Andaluz, chegando a conquistar Toledo em 1085. Vendo que o seu reino começava a correr perigo e privado das qualidades guerreiras e negociais do amigo morto, Al-Mu'tamid, ainda que relutantemente, pede ajuda Yusuf ibn Tashufin, emir dos Almorávidas do norte de África, para lutar contra os Cristãos. O emir dos Almorávidas cede ao seu pedido e envia tropas para a Península que o ajudarão a derrotar Afonso VI, na Batalha de Zalaca, em 1086.
Quatro anos mais tarde, o Rei Cristão volta a investir contra o Reinos Islâmicos e Al-Mu'tamid volta a pedir ajuda. Ibn Tashufin torna a vir em seu auxílio mas desta vez não se limitará a prestar ajuda a Al-Mu'tamid.
Após ter repelido os Cristãos, Ibn Tashufin conquista os reinos islâmicos da Península. Al-Mu'Tamid é feito prisioneiro e desterrado para Aghmat. Por lá passará, penosamente, em cativeiro, os últimos quatro anos da sua vida.
É por esta altura que escreve o mais belo poema que um homem privado de liberdade pode escrever:

Chorei quando vi passar
livre, sobre mim voando,
o bando de cortiçóis.
Nem grades nem grilhetas os detinham.
Não foi por inveja que fiquei chorando...
apenas nostalgia de ser livre,
sem sentir dispersas
as próprias entranhas
e sem filhos mortos
que ao pranto me obrigassem.
Felizes aves:
nunca se apartaram do bando,
não sentem a ausência da família,
nem passam a noite,
como eu, de coração inquieto
ao ranger da porta da cela
ou ao chiar do ferrolho.
Tais sobressaltos não são apenas meus,
fazem parte da humana condição.
Desejo vivamente só a morte.
Outro, quem sabe, se sujeitaria
à vida com grilhetas, mas eu não!
Alá, proteja os cortiçóis
e também as suas crias
pois às minhas, desventuradamente,
abandonaram-nas água e sombra.

15 agosto 2006

COLEGA AHMADINEJAD

Os americanos e os israelitas têm, por estes dias, as orelhas a arder: o colega Ahmadinejad rendeu-se às virtudes da blogosfera. Pena que não deixe grande parte dos seus concidadãos fazer o mesmo.
De qualquer modo não é de aconselhar um grande número de visitas: estaremos expostos a radiação que se pode tornar perigosa.

14 DE AGOSTO DE 1385

A 14 de Agosto de 1385, fez ontem 621 anos, Nuestros Hermanos arrependeram-se de cá ter vindo. Animado pelo seu apetite expansionista, e considerando ser o natural pretendente ao trono de Portugal, em face do seu casamento com D. Beatriz, filha do Rei D. Fernando que não deixou filho varão que lhe sucedesse, D. João de Castela, à frente de um exército de 31 000 homens, invadiu Portugal. Os Castelhanos eram em muito maior número mas os portugueses – seriam cerca de 6 500 –, superiormente liderados por D. João mestre de Aviz e por D. Nuno Álvares Pereira, lograram infligir uma pesada derrota ao inimigo. A contenda teve início pelas seis horas da tarde e ao pôr-do-sol, D. João de Castela, apercebendo-se da impossibilidade de defesa das suas posições, manda retirar. Mais tarde diria que a derrota foi motivada pelo cansaço das suas hostes depois de um dia de marcha sob intenso calor.
O nascer do dia mostrou a dimensão do desastre. Os cadáveres eram tantos que – diz-se –, barravam os cursos de duas ribeiras que flanqueavam a colina onde se desenrolou a contenda.
A Batalha de Aljubarrota encerra, definitivamente, a crise de 1383/1385. O mestre de Aviz torna-se D. João I, dando início à Dinastia de Aviz. Para comemorar a vitória o rei manda construir o mosteiro de Santa Maria da Vitória e funda a vila da Batalha.

COMPRIMIDO-MARAVILHA

O geneticista Hans Hilger-Ropers, investigador do Instituto de Genética Molecular de Berlim, diz a Sky News, está em vias de assombrar o mundo com a descoberta de uma pílula que, literalmente, acabará com a burrice. Embora a investigação ainda não esteja terminada – ainda só entraram ratinhos e moscas-da-fruta –, os resultados já alcançados permitem acalentar as maiores esperanças.
A pílula, actuando sobre as células nervosas do cérebro, ajuda a estabilizar a memória e desenvolve e estimula a atenção.
A comunidade científica, mal soube da iminente descoberta, apressou-se a vir a público desmascarar o pobre investigador. Que não, que embora se possam estimular algumas regiões do cérebro – e para isso existem já químicos que o fazem –, não é possível aumentar o QI. Talvez em maior grau que em qualquer outra, nesta comunidade continua a cultivar-se a inveja!
Cá por mim vou esperar ansiosamente que o Doutor Hilger-Ropers deixe as moscas-da-fruta – encontra facilmente humanos com um cérebro igual –, termine a sua investigação e presenteie o mundo com o comprimido-maravilha.
Os primeiros devem ir directamente para tratamento do secretário Valter, que deve tomar um de seis em seis horas até desaparecerem os sintomas.
E você, caro leitor, quem aconselha? E qual a posologia?

Pelo sim pelo não, vou também encomendar uma caixa. É que há tantas coisas que não entendo…

11 agosto 2006

NEM QUE SEJA UMA GAROA

Desgraçadamente, o país continua a arder!
A natureza não ajuda: as temperaturas continuam altíssimas e a humidade baixíssima;
Os homens também não: por negligência ou por maldade continuam a atear fogos.
Somando todos os hectares que anualmente vão sendo consumidos pelas chamas, temo que as nossas florestas não consigam aguentar por muito mais tempo. Duvido que a mãe natureza tenha capacidade de regeneração que permita acudir a todas estas perdas.
Ou será que estarei enganado? Será que desde sempre, durante o Verão, aconteceu esta desgraça só que as notícias demoravam muito mais tempo a chegar – quando chegavam – levando-nos a pensar que os fogos eram apenas aqueles que queimavam os montes que se divisavam da nossa janela? Hoje, o fogo e o desespero das pessoas entram-nos em directo pelas casas adentro e o horror é repetido até à exaustão, com todas as televisões a competir pelos pelas melhores imagens – pelo maior pavor, entenda-se.
Lembro-me de em tempos ouvir o director de uma estação de televisão Japonesa, afirmar, a propósito do poder imenso da televisão: “Se a televisão não mostrou o incêndio na floresta, será que ela, realmente, ardeu?”. Tenho pensado bastante nisso. Será que a floresta sempre ardeu como agora só que como a televisão não mostrou...
Gostava de ouvir algumas opiniões.
Entretanto, socorro-me de um poema de Geraldo Azevedo, pedindo a S. Pedro que mande alguma chuva - nem que seja uma garoa - aqui para o nosso sertão, e já agora para os Galegos nossos vizinhos que não estão nada melhor do que nós:



Meu São Pedro me ajude
Mande chuva, chuva boa
Chuvisquinho, chuvisquinho
Nem que seja uma garoa


Geraldo Azevedo, Balão de Garoa

07 agosto 2006

REPÓRTER DE GUERRA

Num destes dias, na abertura das notícias da noite de um dos canais, as sacrossantas notícias do horror. O repórter, não sei já se do Norte de Israel se do Sul do Líbano, dá-nos a sua visão dos acontecimentos. Mostra os estragos, grita impropérios para os do outro lado, põe aquela carinha de choque que tinha já posto na reportagem sobre o Mark Dutroux, dá-nos uma prelecção sobre armamento pesado, menos pesado e ligeiro, mostra um grande plano da família que perdeu tudo e despede-se dos telespectadores agradecidos. Amanhã, fará uma incursão ao outro lado e a reportagem será de lá. Mas só a geografia mudará, o directo será, penosamente, o mesmo: os estragos, os impropérios, o semblante, a prelecção, o grande plano.
Não me recordo se consegui assistir à totalidade da reportagem, mas lembro-me de na altura ter pensado em Miguel Torga quando visitou Rio de Onor. Dizia ele: “Ao cabo de oito dias de permanência num mundo destes, com sua língua própria, seus costumes e suas leis, nada escrevi sobre ele, nem sinto que venha a escrever grande coisa. Qualquer jornalista apressado, sem as sete horas de caminho que eu fiz sobre um macho para aqui chegar, faria melhor do que eu. Instalado num hotel de Bragança, com três informações e duas anedotas teria assunto para uma reportagem sensacional.
Pois é, enquanto que os nossos repórteres não conseguirem deslocar-se sobre um macho continuarão a fazer reportagens incolores, inodoras, insípidas e, as mais das vezes, imbecis.

02 agosto 2006

SABER OUVIR

Ao visitante que percorre o souk, nada o separa dos objectos, sejam portas, sejam vidros. E o comerciante, que se rodeia dos seus artigos, nunca os identifica, podendo sempre alcançar quanto tem à venda. Seja o que for, tudo se entrega ao visitante, espontaneamente, sem reservas. Assim, pode ele conservar pelo tempo que quiser, este ou aquele objecto. Pode apreciá-los calmamente, fazer perguntas, levantar dúvidas e até, se a sua disposição lho permitir, contar a sua história, a história dos seus antepassados, ou a história de toda a humanidade, sem que isso o obrigue a comprar seja o que for.
Elias Canetti, As Vozes de Marraquexe

Nascido em 1905 em Rutschuck, uma cidade que hoje pertence à Bulgária mas que à época integrava o império Austro-Húngaro, Elias Canetti, de ascendência Judia, viria a falecer em 1994. Com apenas 6 anos de idade, em 1911, a família parte para Inglaterra, instalando-se em Manchester onde o pai se dedica, com bastante sucesso, ao comércio têxtil, mas um ano depois, em 1912, o seu desaparecimento abalá-lo-á enormemente a ponto de, continuamente, meditar sobre a falta de sentido da morte. “A mais alta e mais formosa tarefa do ser humano é lutar contra a morte”, dizia. No ano seguinte viaja entre Zurique, Viena e Frankfurt. É nesta altura que aprende o alemão que virá a ser a sua língua literária. Na segunda metade dos anos trinta, talvez incomodado com a barbárie que, a pouco e pouco se ia instalando na Alemanha, parte para Inglaterra. Aí produz parte substancial da sua obra que lhe valerá, em 1981, o prémio Nobel da Literatura.
Não sei bem porquê, nestes dias de ódio, lembrei-me de Elias Canetti. Em tempos li “As vozes de Marraquexe”, um belo relato de uma viagem que o autor fez a Marrocos, acompanhando um grupo de amigos cineastas que aí foram filmar. O livro relata as suas deambulações por toda a cidade e a incessante busca do conhecimento de todas as facetas do povo autóctone – fosse árabe ou judeu – e do seu modo de vida, tentando – e conseguindo-o, diga-se – escutar as mil vozes da grande cidade. Fá-lo com tanta sensibilidade, respeito pelas tradições locais e humanismo que toda a obra é um apelo à sã convivência entre os povos.
Vou relê-lo! É uma verdadeira lição para todos nós. Ensina a ouvir e, não tenhamos ilusões, nem todos nós o sabemos fazer.

EVOLUÇÃO NA CONTINUIDADE?

No passado dia 31 de Julho – há dois dias, dito de outra forma –, o governo cubano emitia um comunicado oficial, dando conta dos problemas que apoquentavam o seu Presidente, Fidel Castro. Assinado pelo próprio, o comunicado revela que o líder sofreu uma "crise intestinal aguda com hemorragia, que o obriga a ser submetido a delicada intervenção cirúrgica".
Em face disso, Fidel, delega, ainda que com carácter provisório, no seu irmão Raul – segunda figura do regime e actual ministro das Forças Armadas –, os cargos de primeiro secretário do Partido Comunista, de presidente do Conselho de Estado [Governo] e de Comandante-Chefe das Forças Armadas.
Sobre isto, no JN de hoje, dizia David Pontes: "É cruel pedir a morte de alguém, mesmo que seja por velhice. Mas, infelizmente, há povos que parece não terem outro remédio que esperar que o ditador caia da cadeira ou que definhe no leito da doença. Que venha pois a morte, natural e irremissível, e que, com ela, naturalmente, desapareça a ditadura cubana e os sorrisos possam voltar a ser verdadeiros".