25 abril 2007

DIA LEVANTADO E PRINCIPAL

“E olhando nós de mais longe, de mais alto, da altura do milhano, podemos ver Augusto Pintéu, o que morreu com as mulas na noite do temporal, e atrás dele, quase a agarrá-lo, a sua mulher Cipriana, e também o guarda José Calmedo, vindo doutras terras e vestido à paisana, e outros de quem não sabemos os nomes, mas conhecemos as vidas. Vão todos, os vivos e os mortos. E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal.”

José Saramago, Levantado do Chão

23 abril 2007

PARA O LEANDRO


“Lembro-me […] das tempestuosas prelecções que o Leandro recebia do tio, que terminavam em bofetadas […] de cada vez que topavam com uma palavra abstrusa que o pobre moço […] nunca conseguiu dizer correctamente. A aziaga palavra era «acelga», que ele pronunciava «a cega». Berrava-lhe o tio: «acelga, meu burro, acelga!», e o Leandro, já à espera da estalada, repetia: «A cega.» Nem a agressão de um nem a penosa angústia do outro valiam a pena, o pobre rapaz, ainda que o matassem, sempre haveria de dizer «a cega».”

As Pequenas Memórias, José Saramago


Para todos os Leandros que, apesar de terem aprendido a ler à bofetada, não perderam o amor aos livros.

21 abril 2007

O DIA EM QUE O GOVERNO SE BORROU DE MEDO

“Nós viemos – disseram – porque toda a gente vem”
Gabriel Garcia Marquez, "Cem Anos de Solidão"

De vez em quando, os nossos jovens, aqueles que ainda se sentam nos bancos das escola secundárias mas que hão-de, um dia, governar-nos, decidem “meter o dia”. Não é que não tenham o direito! Outros antes deles o fizeram e hoje são doutores – ou engenheiros, já não sei – e ocupam cargos importantes, mas quando se lhes pergunta a razão do protesto, as respostas são, invariavelmente, de uma pobreza confrangedora. Anteontem, pelos vistos, foi dia de luta dos estudantes do básico e do secundário do Distrito de Viana do Castelo. Não dei por nada. Soube-o apenas porque me chegou às mãos um papelinho amarelo onde os imberbes tinham alinhado uma série de palavras de ordem com que contariam levar o governo a borrar-se de medo.
Imagino a azáfama da rapaziada. O núcleo duro, aquele que de megafone em riste, vociferando as palavras de ordem, comandará a romaria, chega cedo. Munido de corrente e cadeado comprados na véspera, dirigem-se ao portão da escola e prendem-no. Ficam para ali a aquecer-se como podem que as madrugadas ainda estão frias e, quando o Sol já vai alto, e os manifestantes estão em número que se veja, partem para a baixa da cidade. Vão para a Praça da República que é onde se sentem bem, mas, de caminho, berrarão ao Governador Civil.
- Ai Não Exames Não!
- E quem não salta é do Governo!

- A Luta Continua!
- Governo escuta! Estudantes estão em luta!
Desgraçadamente, ainda nem sequer saíram da escola e já o pessoal está desmobilizado.
- Por que veio à manifestação?
- Eu vim porque todos vieram!
Invariavelmente, nos seus protestos, os alunos do secundário clamam por educação sexual e querem ver banidos os exames e as aulas de substituição. Não saímos desta pobreza franciscana.
Embora comecem a escassear, ainda há professores que, enquanto alunos, travaram verdadeiras batalhas e as venceram. Não seria altura de os nossos jovens pedirem a sua ajuda e aprenderem com eles?

18 abril 2007

QUASE TUDO FLORIDO

Ligo a televisão: Na América um celerado entra pelo dormitório da Universidade da Virgínia e assassina trinta e dois inocentes, suicidando-se de seguida. Fecho a televisão.
Abro o jornal: O único trabalho escrito que o aluno José Sócrates apresentou na disciplina de Inglês Técnico na Universidade Independente, foi um texto dactilografado em duas folhas A4, enviadas por fax para o Reitor e acompanhadas de uma mensagem escrita em papel timbrado da Secretaria de Estado do Ambiente. Tudo isto já depois de ter o diploma do curso. Fecho o jornal.
Abro a porta e saio. Ao deliciar-me com todos os aromas que, por estes dias, a Primavera, em todo o seu esplendor, traz até mim, vem-me à memória a prosa de Miguel Torga: "Tudo florido. Aqui, na verdade, as coisas renascem. Se não fosse o coração da minha mãe, a teimar que não, dir-se-ia que a vida não tem fim nestas alturas."


P.S. O Pedro voltou. Ainda bem, pois estávamos com saudade da sua prosa. De qualquer modo nenhum dos seus indefectíveis acreditaria que ele se conseguia manter por mais de 15 dias longe do teclado - e dos amigos, já agora!

06 abril 2007

O PÁSSARO PINTADO

"… após um escrutínio prolongado, escolhia o pássaro mais forte, prendia-o ao seu pulso e preparava tintas […] de diferentes cores. […] virava o pássaro de barriga para cima e pintava-lhe as asas, a cabeça e o peito nos tons do arco-íris até o tornar mais colorido e vívido que um ramo de flores silvestres.
Depois íamos para o coração da floresta. Aí chegados, o Lekl tirava o pássaro pintado e mandava-me segurá-lo na mão e apertá-lo ligeiramente. O pássaro começava a chilrear e atraía um bando da mesma espécie, que voava nervosamente sobre as nossas cabeças. […] Quando um número suficiente de pássaros se reunia [...], o Lekl dava sinal para libertar o prisioneiro. Este elevava-se no ar, feliz e livre, um salpico de arco-íris contra um fundo de nuvens, e mergulhava depois no seio do expectante bando castanho. Por instantes, os pássaros ficavam confusos. O pássaro pintado voava de uma ponta do bando para a outra, tentando em vão convencer os seus parentes que era um deles. Confundidos pelas suas cores brilhantes, os pássaros voavam em seu redor, sem se convencerem. O pássaro pintado era afastado cada vez para mais longe, à medida que tentava zelosamente penetrar nas fileiras do bando. Víamos como, pouco depois, um pássaro após o outro saía da formação num ataque feroz. Em breve, a forma multicolorida perdia o seu lugar no céu e caía no chão.”

O Pássaro Pintado, Jerzy Kosinski

No final de Outono de 1939, na iminência de as tropas Nazis invadirem a Polónia, era muito perigoso para um rapazinho de pele escura, olhos negros e cabelo de azeviche ficar calmamente no seu lugar a vê-las passar, por isso, como milhares de outras crianças, foi enviada para uma aldeia do Leste do país. Aí chegado perde todos os contactos com os pais. Nos cinco anos seguintes, até à chegada do Exército Vermelho, o rapazinho sem nome conhecerá todo o horror de que a espécie humana é capaz. Nas aldeias perdidas do Leste, a vida pouco mudou desde a idade média. A miséria, a ignorância, o medo e a superstição grassam entre as suas populações. É aqui, no meio do ódio, que o rapazinho de seis anos irá conhecer o mundo e interpretá-lo.
O Pássaro Pintado de Jerzy Kosinski é uma bela obra que aconselho vivamente.
Uma última nota: o escritor, naturalizado Americano, nasceu na Polónia. Tinha seis anos aquando da invasão do seu país pelas tropas nazis, era de ascendência judia e foi separado dos pais antes da chegada do invasor. Kozinski, suicidou-se em Nova Iorque a 3 de Maio de 1991, por ter sido, finalmente, apanhado pelos seus fantasmas, diria John Corry.

05 abril 2007

SÃO BURROS!

Periodicamente, em cada Páscoa, os nossos jovens - alguns dos nossos jovens, melhor dizendo, acho que uma pequenina parte dos nossos jovens, assim é que está bem -, atravessam a fronteira e tomam de assalto as praias de Lloret del Mar, nos arredores de Barcelona, para se embebedarem, ininterruptamente, durante cinco dias. Tenho pensado – não muito nem com muita profundidade, confesso – sobre as razões deste ritual mas a conclusão é, invariavelmente, a mesma: estupidez! Não, não pode ser, pensava, deve haver uma qualquer razão mais plausível para esta imbecilidade. Não compreendo como uma horda de imberbes se juntam a mil quilómetros de casa para, apenas, despejarem uma qualquer mistela pelas goelas abaixo até ter de ir para o hospital. Tem de haver outra razão. Até que, um destes dias, pela boca de um deles – o Filipe de Portimão –, fiquei, finalmente, a saber qual a razão do rito, numa reportagem feita pelo JN. Quando em presença de uma multidão de alucinados pelo álcool e pelo fumo, o jornalista vai fazendo perguntas a este e aquele, o Filipe, de uma forma lapidar, resumiu: "Tá tudo muito bêbado e fumado, mas fazem-no apenas porque tem de ser e não por opção deles. São burros".