29 dezembro 2011

O MEU CONTO DE NATAL

Capítulo I
AINDA UM DIA HEI-DE ESCREVER COISAS ASSIM...

Se mo perguntassem não saberia explicar porquê, o certo é que, chegada a época do natal, aquela época em que a rua fica engalanada com luzinhas multicolores e laçarotes vermelhos e as pessoas se mostram mais simpáticas, dou por mim a sonhar com grandes feitos literários. Há anos que ocupo um lugar privilegiado para espreitar os livros que os clientes vão folheando e há frases que recordo a cada passo: “Muitos anos mais tarde, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo”, é das minhas preferidas. É a primeira frase de um livro. Agora que me vem à memória… que teria feito o coronel Aureliano para merecer tal sorte? Grande coisa não terá sido para se passar assim pelas armas um coronel, mas ouve-se por aí cada coisa que o melhor é não nos deitarmos a adivinhar. “… aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo”, ah, como gostaria de ter sido eu a escrevê-la… 
- Desculpe, posso ser-lhe útil em alguma coisa?
- Pode sim senhor! Queria comprar uma caneta para oferecer.
- Com certeza, queira acompanhar-me, por favor.
A simples alusão a caneta teve o condão de me despertar dos meus sonhos - ou devaneios, não sei -, e olhar para quem assim falava. Um homem alto, de barriga proeminente e faces rosadas seguia já o empregado. Vi-os aproximar-se. Temos aqui esta Parker, material de confiança – dizia o empregado -, com uma óptima relação qualidade preço, ou então esta Sheaffer, modelo clássico, de uma fiabilidade a toda a prova ou ainda esta Rotring, com um design mais moderno mas com uma ergonomia irrepreensível ou... - O empregado ia desfiando a ladainha mil vezes repetida mas o barrigudo nem o ouvia, absorto que estava a observar todas as canetas do mostruário ou, valha a verdade, mais o pedacinho de cartolina preso por um fio a cada caneta do que a própria caneta. Até que, de repente, vi um dedo grosso a apontar para mim:
- Quero esta!
O empregado, apanhado assim à falsa fé, ficou momentaneamente aturdido mas logo se recompôs:
- Uma óptima escolha. É sem dúvida o melhor exemplar de que dispomos na nossa loja.
- Então embrulhe-ma. Vou oferecê-la a um grande amigo meu.
- Com certeza.
E enquanto me iam fechando na escuridão do meu sarcófago de papel de fantasia dei por mim a pensar, sabe-se lá porquê, que todos os meus sonhos não passavam disso mesmo.
Não sei o tempo que passou: se dias se semanas. Na escuridão perde-se a noção do tempo. Uma vez tinha lido isso e achei que o escritor, sendo um romance épico, o tinha lá posto apenas porque ficava bem, mas agora, assim fechada no escuro, tinha a prova que afinal, sendo sempre noite, não se consegue ter a percepção da passagem do tempo, mas por fim lá sou sacudida mais uma vez e volto a ver a luz. Primeiro por uma nesga que foi abrindo, abrindo, até o papel de fantasia ser todo arrancado.
- Outra esferográfica! Aquele vaidoso do Antunes sempre com a mania das ofertas finas. Há-de pensar que sou escritor. E ainda por cima com aparo. Sabe que não me ajeito com estas coisas e toca de me dar uma…
- Olha, uma boa prenda para ofereceres. Há-de haver gente que dá grande valor a essas coisas. Devia ser a esposa do grande amigo. Silenciosa como estava, mais interessada no programa da televisão do que nas prendas do marido, ainda não tinha dado por ela.
Não fora o grosso anel de ouro que usava no mindinho da mão direita e um nadinha menos de barriga, dir-se-ia que o Antunes e o grande amigo eram uma e a mesma pessoa. Depois de me observar sumariamente, deixou-me esquecida em cima de uma mesa antes de, ao fim da noite, atirar comigo para uma gaveta. Quando a escuridão voltou a derramar-se sobre mim senti que o mundo todo desabava e entrevi, então, pela segunda vez, o fim dos meus sonhos. Mas recusei render-me: não seria a reclusão numa gaveta que me venceria. Claro que seria custoso passar os dias no escuro sem ao menos poder espreitar os livros que os clientes da loja iam folheando ou ouvir uma ou outra conversa sobre as novidades que iam saindo mas continuaria a sonhar. E depois as palavras da mulher “Há-de haver gente que dá grande valor a essas coisas” que continuavam a ecoar na minha cabeça seriam o antídoto a que poderia recorrer sempre que o desalento ameaçasse instalar-se no meu espírito. Um dia, tenho a certeza, escreverei um texto como aquele que foi lido a um rei e que começava assim: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher.

Continua...

PS. O desafio que faço aos eventuais leitores é que comecem a pensar nos próximos capítulos de modo a enriquecer a pobreza franciscana deste, digamos, urbano conto de natal. Fico à espera de contribuições.