31 dezembro 2012

CONTO II


Capítulo II
NO TEMPO EM QUE NÃO HAVIA INTERNET NEM PLAYSTATION


A gaveta fechou-se com estrondo e eu fiquei completamente cega. Que saudades do marçano lá da loja, da delicadeza com que abria e fechava as gavetinhas minúsculas de plástico transparente dos mostruários, do cuidado com que nos manuseava, da sensibilidade e orgulho com que nos mostrava aos clientes e lhes falava de nós. Que saudades... Aqui no escuro, sozinha, consigo, por fim, compreender o que li há já muito tempo, li que “a saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora”. Lembro-me que foi num livrinho pequenino mas não me lembro do autor. Talvez nem o tenha conseguido ler, como acontecia muitas vezes, mas estas palavras tão poéticas, que agora me vêm direitinhas à memória, só podiam ter sido escritas por uma pessoa sensível. Naquela altura achei-as bonitas, por isso as recordo, mas não lhes dei uma especial importância, mas agora, aqui fechada, nesta solidão, consigo perceber o que a menina - acho que era uma menina que o dizia - sentiria ao dizê-lo.
Quando comecei a habituar-me à escuridão, que um fiozinho de luz, entrando pela frincha da gaveta, ia combatendo, comecei a perceber que, afinal, não estava sozinha. Antes de mim já outras três tinham tido a mesma sorte, atiradas para a gaveta ainda dentro da caixinha de plástico. Por que não teriam falado? Por que não me teriam dado as boas vindas quando me arremessaram para a gaveta e eu não via nada? “Olá! Não falamos antes porque, entre nós, decidimos que não o faríamos. Quem chegasse teria uns momentos de recolhimento, digamos assim, para se aperceber, talvez devesse dizer para se conformar, da sua nova vida e então, quando o breu desse lugar à penumbra, poderíamos, conversar.” Foi uma bela caneta, toda em madrepérola, quem assim falou. Parece que tinha ouvido os meus pensamentos. “Olá!” respondi.
Dali a pouco ouvimos passos e pouco depois a frincha apagou-se. Agora não passávamos de ténues silhuetas. O barulho da casa foi baixando a pouco e pouco até que se instalou o silêncio. “A parte do dia por que esperamos ansiosamente. Embora quase não se consiga ver podemos falar à vontade e rir às gargalhadas das histórias que contamos. Conta-nos a história de que falaste ontem, caneta primeira” disse a madrepérola. “Caneta primeira?” - admirei-me. “Sim. Decidimos que ficaríamos conhecidas pela ordem em que cá chegamos. Eu, por exemplo sou a caneta segunda, e tu serás a caneta quinta!”. “Caneta quinta? Mas só cá estamos quatro! Porque terei de ser a quinta?” - contestei. “Serás a caneta quinta porque foste a quinta a cá chegar. Talvez não tenhas reparado mas ali ao fundo está a que chegou antes de ti, a caneta quarta”. Então é que reparei. Ao fundo da gaveta lá estava. Embora com dificuldade conseguia-se adivinhar uma caixa ainda meio coberta pelo papel de fantasia Estava ali outra de nós. Talvez a mais taciturna de todas, por isso não tinha ainda dado por ela. “Conta então a história de ontem, segunda” - tornou a madrepérola.
Passou-se já há bastante tempo – começou – por isso pode ser que alguns pormenores não tenham sido rigorosamente como vou contar mas não alterarão, com toda a certeza, a história. Um dia, vi chegar dois clientes. Não tenho grande jeito para adivinhar idades mas não errarei muito se disser que um tinha já passado, há muito, o meio século, o outro era bem mais jovem, talvez filho, ou mesmo neto. Olhavam para nós e iam fazendo comentários acerca do que iam vendo. O mais velho era o que mais falava. Estava constantemente a mostrar ao mais novo pormenores em que, confesso, nunca tinha reparado. De repente, acerca-se de uma bela caneta com aplicações de ouro no aparo, faz um ar pensativo, e começa a recordar: 
Caneta de aparo... aparos … deixa-me sonhar um bocadinho. Aparos, trazem-me à memória a pena, uma chapinha bicuda com rabinho de “pau” que, a espaços que se contavam pelo número de letras escritas num azul retinto, se mergulhava no tinteiro branco de cerâmica embutido no meio do tampo da carteira com assento de dois lugares, onde, putos ainda, nos sentávamos. As calças remendadas, calçados com chancas ou com socos, com “solas” em madeira de freixo e cobertura de duro couro de boi, mas não tão duro que os pés o não conseguissem moldar, ainda que com alguma ajuda do sebo com que o esfregávamos para o impermeabilizar e não deixar entrar a água da chuva ou das poças do caminho que teimávamos em não contornar. Na carteira se aperfeiçoava a caligrafia e se treinava a aritmética. Na carteira nos espantávamos com a valentia dos antepassados e a imensidão do império. Na carteira se levava “bolos” com a palmatória de furinhos e se pendurava, a escorrer, o saco de serapilheira, que depois de transportar cinquenta quilos de batatas de semente Arran-Banner ou Arran-Consul ou mesmo de Portalegre, menos cosmopolita, é certo, mas batata da nossa, servia para nos abrigar da chuva. Sim, porque o guarda-chuva, de grosso pano preto com cacheira de madeira e varetas maciças que davam ótimos instrumentos para jogar ao espeto, não era coisa de crianças, ou melhor, não era coisa para todas as crianças. A chapinha bicuda ou aparo, parecido com aquele que nos causou pavor quando éramos pequenos e nos riscaram o braço, logo abaixo do ombro, que nos deixou para sempre uma cicatriz como prova da nossa vacina contra o sarampo – sarampo, sarampêlo, sete vezes vem ao pêlo. Foi também a primeira forma de tatuar que conheci quando espetei no joelho, um, carregadinho de tinta.
À memória vem-me ainda a minha primeira professora, que mandou o meu pai comprar a minha primeira pena e com ela me ensinou caligrafia no caderno de duas linhas. A Dona Fernanda era uma simpática velhinha. Seca de carnes, vestia sempre de preto, um comprido casaco com uma textura em bordado de alto-relevo e tom brilhante, que apenas deixava espreitar uns sapatinhos de salto baixinho como ela, parecidos com os da Minie ou da Olívia Palito, figuras fantásticas que nos faziam sonhar quando éramos pequenos. Líamos e relíamos as histórias aos quadradinhos, nas revistas que os filhos do senhor Coutinho, aquele que construiu o prédio onde antes era o Mercado Municipal e que agora querem deitar abaixo, nos davam para passar o tempo. 
Não havia internet nem playstation e televisão só no café da Tia Lina. As contas e as redacções eram feitas numa pedra fininha de xisto cinzento, a lousa, que se partia quando caía ao chão e só ficava pretinha quando as oliveiras tinham azeitonas maduras. Esfregávamos e besuntávamos a nossa lousa, que ficava com o cheiro da carroça do azeiteiro da ponte quando levava a "venda" às casas da aldeia. Mas o que nos faltava em tecnologia sobrava-nos em engenho. Roubavam-se lá em casa os preciosos rabos de bacalhau que atados a um fio barbante eram o isco perfeito para apanhar dúzias de caranguejos no Poço Pescadouro. Finda a pescaria preparava-se a confeção: sobre um molho de caruma colocavam-se os pobres crustáceos que, parecendo adivinhar a sua sorte, faziam tudo por fugir antes que o lume os assasse. Aqueles que o conseguiam não poderiam vangloriar-se da façanha por muito tempo pois logo uma mão providencial aparecia para o devolver ao seu lugar. Quando não íamos à pesca inventávamos sofisticadas ratoeiras para apanhar pardais ou então atacávamos os pomares. Com um misto de fome e de vontade de aventura, escalávamos os altos muros da quinta do Ganhão para roubar as apetitosas maçãs que, de outro modo, dificilmente provaríamos. Os mais corajosos de entre nós metiam-se noutras aventuras bem mais temerárias. Noite cerrada, amoitavam-se na leira do Vieira munidos de pesados torrões esperando pelo cabo da Guarda Nacional Republicana que haveria de passar por ali montado na sua pachorrenta Famel Zundapp a caminho de casa. Durante o dia, quando passava na estrada, com a farda cinzenta e aquele redondo capacete de chapa e a grande espingarda Mauser, com uma assustadora baioneta que brilhava ao Sol, pousada no quadro da bicicleta, aterrorizava quem com ele se cruzava. Agora que não tinha a ajuda da farda iria pagá-las. O barulho da fumarenta Famel quando descia os Carregais era o nosso sinal. Três minutos de tensão, medo e coração a bater, até se ver a luzinha a sair da curva do Vieira. Então, era só esperar uns segundos até que se encontrasse no nosso raio de ação e toca a despejar as “munições”. Depois era fugir pela noite dentro, atravessando o rio da Fonte Grossa, pelos carreiros que se conheciam de cor e esperar em silêncio, quase sem respirar, no meio do centeio ou do azevém, não fosse o homenzinho ter coragem para nos perseguir no escuro.
Lembro-me agora que a Dona Fernanda usava sempre um barrete à Cossaco, tal e qual como o daqueles homens da Tundra que caçam lobos, lebres e raposas com ajuda de uma águia. Ela não caçava lebres nem raposas e muito menos lobos, mas fazia muito mais do que isso: mantinha na mesma sala uma “alcateia” em silêncio, das nove às três, com quarenta “lobos e raposas” dos sete aos catorze, e, da primeira à quarta classe, ensinando a todos as contas, a leitura, a história, a geografia e a caligrafia com a pena de aparo. Chegava todos os dias às oito e meia na camioneta de carreira do Sordo. Saía na paragem do Lima e às três e meia partia na mesma camioneta, rumo a casa, ali para os lados da Bandeira.
Aparo, pena, Dona Fernanda… quantas recordações que pensava estarem completamente esquecidas…
É do que me lembro. O contador recordava com tal prazer a história que, de quando em vez, eu via muito bem, os seus olhos brilhavam. O mais novo, esse, não desviava os olhos do outro. Quase nem pestanejava. Parece que tinha medo de perder alguma peripécia da história.
Bom, já é tarde - disse a madrepérola -, ficamos por aqui. Amanhã continuamos...


Depois do primeiro capítulo publicado há cerca de um ano, este foi, digamos assim, escrito a duas mãos. Só conseguiu ver a luz do dia com a prestimosa ajuda do meu irmão Chico. Vamos lá pensar no próximo. Quem se chega à frente?

29 dezembro 2012

BOM ANO



Quem nos pôs aqui sabia muito bem o que estava a fazer. Senão reparem: podia ter-nos posto em Mercúrio. É tão telúrico como nós. Mas não o fez. Se fossemos lá colocados, a cada oitenta e oito dias, nem sequer a cada trimestre, a cada oitenta e oito míseros dias, lá estávamos nós a desejar tudo de bom, como agora se diz - não sei aonde vai o pessoal beber estas modas; é quase como os políticos e os locutores de televisão que dizem «Há cinco anos atrás…» ainda gostava de saber como será há cinco anos à frente – bem, dizia eu, desejar tudo de bom a toda a gente. E isso cansava. Era dizer quatro vezes por ano – ano dos nossos, claro - a mesma coisa. Imagine-se o pessoal a comer as passas e a desejar a queda do governo e ter, ainda que na pior das hipóteses, de repeti-lo por dezasseis vezes antes do dito cair. Uma eternidade. Não dá. Além da caloraça que por lá faz – muito pior que na Amareleja - a vida tornava-se muito repetitiva. Tão repetitiva e enfadonha que o Manuel de Oliveira estava por estes dias a fazer quatrocentos e trinta e dois anos; notem bem, quatrocentos e trinta e dois. Assim não dá. Risque-se Mercúrio!
Podia, então, ter-nos posto em Marte. Ficaríamos mais aconchegadinhos, é certo, porque o condomínio é bem mais acanhado, mas até dava jeito para combater o frio que por lá iríamos rapar. Mas não nos pôs. E fez muito bem! Seria uma seca ter de esperar quase dois anos dos nossos para desejar tudo de bom aos amigos. Imagine-se ter de esperar dois anos para pedir a queda do governo… É verdade que se poupava em passas mas não compensava o que se gastava em tédio. Note-se que lá o Oliveirinha dos filmes era ainda um jovem de pouco mais de cinquenta anos. Demasiado parado: risque-se Marte!
Podia ainda ter escolhido Plutão mas ainda bem que não o fez. Primeiro porque não iríamos ganhar para aquecimento e depois porque haveria de chegar – como chegou – a altura em que os sábios da astronomia haveriam de desclassificá-lo e seria de muito mau gosto a gente viver num planeta que, veio a saber-se mais tarde, não passava de um plutóide. Assim mesmo, plutóide, que, para todos os efeitos, não passa de uma forma gentil de dizer que agora Plutão é um calhau.
De modo que, riscando-se também Plutão e subtraindo os gasosos, o que sobra? Pois é, quem nos pôs aqui sabia, realmente, o que estava a fazer. É o sítio ideal. O único onde um “ano” vale precisamente um ano, nem mais, nem menos. E um ano, todos o sabemos, nem é demasiadamente curto nem excessivamente longo. É por isso que, no dealbar de um novo ano, cá estou eu a desejar que os teus sonhos se realizem e os teus pesadelos se não cumpram.


Vamos agora dar a palavra a quem, realmente, merece. Carlos Drummond de Andrade dizia isto muito melhor do que eu digo:

Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar
e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação
e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar
que daqui para diante,
vai ser diferente.

22 dezembro 2012

CONTO DE NATAL



O SONHO DO SEBASTIÃO

Faz quase dois anos que a sua vida é uma peregrinação pelas oficinas, pelos estaleiros e pelas quintas das redondezas. Quando arranja um pequeno trabalho – apanhar a fruta num pomar, reparar um muro danificado pelas asperezas do último inverno, preparar os cascos que hão de receber o vinho novo – a vida como que ganha um novo significado. É vê-lo, manhã cedo, partir para o trabalho cabeça bem ao alto distribuindo sonoros cumprimentos a todos os que com ele se cruzam. E enquanto labuta imagina a alegria dos pequenos quando, à tardinha, ouvirem o trinco da cancela. Imagina a alegria dos seus e pensa em todos os outros que à noite irão para a cama de estômago vazio e não consegue evitar que os olhos se lhe inundem. E então chora, chora por si, chora pela Mariana que é a âncora da família, chora pelos seus pequenos e chora por todas as crianças do mundo.
Hoje, Sebastião, não conseguiu trabalho. Depois do magro almoço, Mariana agasalhou os filhos, corrigiu o casaco ao marido e impô-los pela porta fora: «Ala, vão passear, ver os pássaros, e não voltem antes do anoitecer!» E os três lá foram, felizes, pelos campos fora. Nalgumas covas mais abrigadas resistiam ainda alguns farrapos da neve caída na véspera que logo era transformada numa bola pelo primeiro a descobri-la. E admiraram-se com a perspicácia das trutas a subir o ribeiro. E seguiram, de nariz no ar, as revoadas de tordos de azeviche, espantando-se com as suas acrobacias aéreas. E, sempre que os conhecimentos de botânica do pai o permitiram, catalogaram as espécies desconhecidas que se lhes atravessaram no caminho. Até que chegou a hora. O sol, que andou tímido o dia todo, iria esconder-se não faltava muito. As crianças atiraram as últimas pedras à água do ribeiro e os três, empreenderam a viagem de regresso. Ainda as primeiras casas da aldeia não se viam e já, prodígios da meteorologia, os mil cheiros do natal, amplificados pela frugalidade imposta aos seus estômagos, chegavam até eles estugando-lhes o passo.
A mãe estava na cozinha. Envolta numa nuvem de vapor, que os três aspiraram sofregamente, preparava as últimas iguarias da ceia de Natal. Com as verduras da horta, os bicos da capoeira e o cabaz da assistência social, Mariana fazia maravilhas. «Vieram mesmo a tempo. Vá lá, lavem essas mãos e essas caras imundas e sentem-se que o jantar já não demora.» E foi um lauto jantar. As crianças podiam repetir as vezes que quisessem. E comeram batatas e as couves mais tenras da horta e escamudo como se fosse do melhor da Noruega e galinha com arremedos de peru e rabanadas e arroz doce e nozes e pinhões. O pai teve até direito a vinho quente com açúcar. Até que todos se fartaram. Agora era esperar a hora de abrir as prendas que a mãe, carinhosamente, tinha depositado debaixo do pinheirinho, armado num canto da cozinha. E os quatro, muito juntinhos, foram sentar-se à volta do borralho. A mãe, como sempre fazia, começou a contar histórias de Natal. Enquanto os pequenos bebiam avidamente as palavras, Sebastião, embevecido, olhava a mulher e pensava que não fora ela e há muito que a família se teria desmoronado. E enquanto pensava, as palavras do conto iam-se afastando, afastando, até não serem mais que um rumor impercetível e, ainda o Garrinchas não tinha chegado ao adro da ermida da Senhora dos Prazeres, já Sebastião, ajudado pelo vinho quente, adormecera.
Viu-se numa sala imensa. Na parede do fundo uma figura de mulher com os olhos vendados. Na mão esquerda segurava uma balança, na direita empunhava uma espada. Na metade oposta da sala, resguardada por uma sólida balaustrada de madeira, a assistência aguardava. Sebastião olhava à esquerda e à direita e via outros homens que como ele se recusavam a desistir. Até que o juiz, vestido de negro, com uma farta cabeleira branca aos caracóis que lhe chegava aos ombros, mandou entrar os réus. A porta abriu-se e começaram a entrar, cabisbaixos, os políticos que há décadas governam o país. Alguns conhecia-os, outros nunca os tinha visto e havia até alguns dirigentes de grandes empresas que nunca imaginou terem sido ministros. O espaço que lhes estava destinado ficou completamente cheio e a assistência, sem conseguir reprimir mais o asco por aquela gente, ia acusando, em surdina, um e outro: «Está a ver aquele ali? Sim, aquele, é o diretor de uma empresa que faz estradas e pontes e antes era ministro; e aquele ali, o do fato azul, mal chegou a ministro empregou toda a família no ministério. A filha acabou o curso e no dia seguinte estava a dirigir um gabinete como se tivesse vinte anos de experiência; olhe aquele, o do cabelo branco, esteve meia dúzia de anos no governo e está reformado. Ganha mais num mês que um de nós em dois anos. Um de nós, dos que temos emprego, claro; e aquele pulha, aquele magrinho, não é o do banco?»… Até que a voz tonitruante do juiz se fez ouvir: «Silêncio!»
Começou, então, por perguntar o nome a cada um dos acusados mesmo àqueles que todos na sala conheciam e, após obter a resposta, com o indicador espetado e semblante acusador, continuava: «Quando era governante, antes de tomar as decisões que viria a tomar, sabia que elas provocariam a crise que hoje afeta o nosso país e, mesmo assim, tomou-as. Hoje, como consequência das suas determinações, há crianças que passam fome e outras que desmaiam nas aulas por falta de alimento. Tem alguma coisa a dizer em sua defesa?» Quase todos continuaram no seu mutismo receoso e aqueles que ousavam encarar o juiz faziam-no com tanto temor que apenas lhe saíam algumas frases inaudíveis para a assistência mas que o juiz rebatia de imediato. Quando todos falaram, a sala quedou-se em silêncio. O juiz sentenciou então: «Os réus que hoje se apresentaram neste tribunal são culpados pelo estado a que o nosso país chegou. Não são merecedores de piedade. Defraudaram o povo que acreditou neles. Cumprirão todos pena de prisão.» A alegria na assistência foi esfuziante. Deram-se vivas e cantaram-se hossanas e nesse momento na cozinha da casa do Sebastião todos viram o sorriso que se lhe desenhou no rosto. As crianças concluíram que o menino Jesus, finalmente, tinha nascido mas a mãe teve a certeza que naquele momento, Sebastião tinha apanhado aqueles que nos tinham trazido até aqui, e todos eles iriam pagar pelas tremendas maldades que tinham cometido.

21 outubro 2012

EU SOU GREGO


Sempre que vou a Lisboa dou um salto ao Bairro Alto: subo a Calçada do Combro, meto pela rua do Poço dos Negros e viro, lá à frente, para a rua de S. Bento. Chegado ao palácio páro junto da escadaria e assesto o ouvido. Ao princípio é apenas um rumor, um som indistinto que parece provir de muito longe, mas logo que os ouvidos conseguem catalogar os mil ruídos da cidade, o som familiar de gritaria aí está para me lembrar que a vida segue o seu curso e eu posso seguir, então, o meu caminho. Lembrei-me desta minha peregrinação quando li o último livro de Hélia Correia, “A Terceira Miséria”. O longo poema começa por uma pergunta tomada de empréstimo ao poeta germânico  Friedrich Hölderlin «Para que servem os poetas em tempo de indigência?» Ao longo da leitura do poema fui, paulatinamente, descobrindo a serventia dos poetas nestes tempos de desastre: os poetas servem para dar gritos! Não, claro, para gritarem, que para isso há muitos que o fazem muito melhor do que eles, mas para dar gritos! Gritos que se oiçam em toda a parte: gritos que se oiçam nas ruas, gritos que entrem pelas fábricas e pelas escolas adentro, gritos que despertem as vontades estuporadas, gritos que avivem as memórias, gritos que nos ensinem outra vez a perguntar, gritos que não nos deixem soçobrar, gritos estridentes que consigam, até, trespassar as espessas paredes dos gabinetes asséticos onde “eles” se acoitam. É disso que se trata: do grito que se vai formando nas gargantas da gente do Sul, da gente que um dia ainda se desnorteia.
O poema é também uma homenagem à Grécia à «bela Atenas, a que viu aparecer entre os homens a justiça e a livre palavra». Há dois mil anos, diz-nos Marguerite Yourcenar, o imperador Adriano confidenciava ao seu filho adotivo Marco Aurélio: «Foi em latim que eu administrei o império; o meu epitáfio será inciso em latim nas paredes do meu mausoléu na margem do Tibre, mas é em grego que eu terei pensado e vivido.» A um imperador não é permitido revelar aos súbditos o mais profundo da sua alma por isso Adriano disse assim o seu amor e a sua admiração pela Grécia. Hélia Correia que é imperatriz noutro império que a não obriga a estas reservas di-lo, por isso, com todas as palavras ao longo de todo o poema. E no fim somos todos instados a escolher o nosso lado da barricada: eu sou grego!

05 outubro 2012

E DEPOIS DO ADEUS...

Depois da bandeira de pernas para o ar, do pátio do cagaço e do discurso do anfitrião, só faltou mesmo o Paulo de Carvalho a cantar a cappella “e depois do adeus”: pareceu-me vislumbrar o ocaso desta república.

23 setembro 2012

SÓ TENHO UM ADJETIVO


No ecrã, o recém-empossado Presidente da Junta de Salvação Nacional, o general António de Spínola, preparava-se para se dirigir ao País. Dois homens à sua esquerda. Três homens à sua direita. Tudo gente das cavalarias, das armadas, dos esquadrões. Gente séria, com toda a certeza. Estamos bem entregues. Diversidade nos penteados, pelo menos. Já é um começo, já é um começo.
«Graças a Deus», pensou ainda o Doutor Augusto Mendes, dirigindo-se ao recém-empossado Presidente da Junta de Salvação Nacional, «tiveste o bom senso de não aparecer com o teu ridículo monóculo. Ou as letrinhas do comunicado são assim tão miudinhas? Não me digas que te viste obrigado, à última da hora, a usar os óculos de ver ao perto? Não acredito. Ai, deves ter ficado tão fodido quando percebeste que não podias aparecer neste momento histórico com o teu ridículo monóculo. Quem é que escreveu esta merda? Só vejo mosquitos, porra. Tragam-me os óculos».
Ontem, quando acabei de ler o livro de estreia de João Ricardo Pedro, lembrei-me de outro almirante. Não um almirante daquela armada séria que apaziguava os temores do doutor Augusto Mendes mas de outra que gostava tanto da água como qualquer gato vadio. Um almirante que, durante dezasseis longos anos, nos habituamos a ver, tesoura em punho, segando tudo o que lhe estendessem à frente. Conta-se que, na inauguração de uma obra qualquer do regime, depois de, com ar entendido, ter admirado a construção, sentenciou: «Só tenho para isto um adjetivo: gostei!»
A obra estende-se por três gerações: o avô, Doutor Augusto Mendes, médico, de boas famílias da cidade do Porto, que um dia, cansado da vida atribulada do hospital, decidiu aventurar-se para lá do Fundão, passando Alpedrinha, na casa do demónio de onde até as cobras fogem, para ser apenas um médico de aldeia; António, o filho, acossado pelos demónios da guerra colonial. Aldeias inteiras. Mães aos gritos. Palhotas, estás a ver? Ardiam num fósforo. Os corpos demoravam mais tempo. O cheiro; e Duarte, o neto, um exímio pianista, tentando desenvencilhar-se neste ambiente que, como diria o poeta, paira à tona de água, com a mãe a lutar para que tudo não se afunde definitivamente: «Eu estou a morrer, Duarte. E o teu pai ama-te muito, e vai precisar muito de ti. Tens de o tentar compreender…».
Pelas páginas do livro perpassam os êxitos e as adversidades, talvez mais estas do que aqueles, das três gerações da família. Numa linguagem escorreita, tomamos conhecimento de histórias hilariantes: o episódio do Amável um menino triste, franzino, doente e efeminado que um dia abalou para África e que, apesar dos boatos que o davam rico com propriedades imensas no norte de Angola e mais de quinhentos pretos ao seu serviço, regressou, vinte anos depois, como tinha partido e, se possível, ainda mais amarelento. Condoída pelo seu estado, toda a aldeia para lá do Fundão, ainda depois de Alpedrinha, meteu mãos à obra e em cinco dias reconstruiu a casa que tinha sido dos pais. Mas o Amável não dava sinal de melhora, cada dia mais débil, mais febril, até que o obrigaram a ir ao consultório do Doutor Augusto Mendes. Com o conhecimento de quase sessenta anos de prática clínica e algumas apalpadelas, o médico sentenciou que o seu problema estava na “tripa”. Mandou-o baixar as calças e colocar-se de gatas, e aviou-lhe um valente clister. Depois de devidamente esvaziado pode verificar-se que o causador de tamanho desarranjo tinha sido um saquinho de plástico cheio de diamantes. O livro fala-nos, até, dos inolvidáveis golos do Mário Kempes no campeonato do mundo de setenta e oito e do valente Manuel Zeferino que, não sendo um Nicolau nem um Trindade e muito menos um Agostinho, bastava olhar para ele para se ver que era bom rapaz.
Fala de tudo isto e de muito mais. E fala, ainda, das mulheres. Uma homenagem às mulheres. De capítulo inteiro. Um quase poema com algo de épico a fazer lembrar aqueloutro que fala da Luísa da Calçada de Carriche. Uma homenagem ao trabalho, à coragem e à sabedoria das mulheres e que termina assim: «Tenho um cancro.» Encostou a mão ao seio esquerdo e disse: «Aqui.» Depois disse: «Vou ser operada na segunda feira, amanhã dou entrada no hospital.» Depois disse: «A despensa está cheia, fiz bacalhau com natas, que está no congelador, e uma panela de sopa.» Depois disse: «No congelador também há bifes e hambúrgueres e costeletas.» Depois disse: «Devo ficar internada, pelo menos, uma semana depois logo se vê.» Não disse mais nada.
Pese embora a obstinação da Dona Laura, deixando bem claro que o que quer que estivesse a acontecer no País, ali em casa tudo permaneceria na mesma, pela obra parece perpassar uma certa mágoa pela chegada tardia do 25 de Abril. Policarpo, que anos antes tinha trocado o país pela civilizada Europa de Newton, Lavoisier e Descartes, a bendita Europa, que, se formos a ver, só começa em atravessando os Pirenéus, escreveria ao amigo Augusto depois da revolução: «Agora já estou velho, já não volto. Agora já é tarde.»


04 agosto 2012

GRITA-LHE NOMES FEIOS


Quando vejo um político na televisão tentando, desavergonhadamente, justificar o injustificável dá-me cá uma vontade de lhe agarrar pelos colarinhos… Em vez de se atenuar, esta minha sanha destruidora tem vindo, desde há uns anos a esta parte, a crescer. À falta de melhor, mal começam, ufanos, tentando enganar-me, desato a responder com obscenidades a cada uma das suas mentiras. É a minha maneira de libertar a tensão que começa a criar-se mal a criatura abre a boca. Confesso que começava a ficar preocupado com este crescendo de fúria, mas, finalmente, a ciência vem em meu auxílio. Três investigadores da Universidade de Keele, na Grã-Bretanha, Richard Stephens, John Atkins e Andrew Kingston, após aturados – e penso que apurados – estudos científicos, concluíram que gritar obscenidades liberta a tensão e alivia a dor. «O que pensamos – diz Stephens, professor de Psicologia, e coordenador da equipa – é que quando injuriamos produzimos uma reação emocional que estimula o nosso sistema nervoso, fazendo com que o coração acelere e a adrenalina corra.» Com esta importante descoberta os investigadores venceram o prémio Ig Nobel e foram recompensados com a fabulosa quantia de dez biliões – assim mesmo biliões dos nossos ou triliões se preferirem os americanos – de dólares… do Zimbabué.
Sei há muito tempo que chamar cabrão e filho da puta e mandar o intrujão para a puta que o pariu, alivia – oh, se alivia – a tensão que se começa a acumular em nós quando ouvimos as primeiras mentiras. Sei isso há muito mais tempo do que os sábios de Keele, não tive é oportunidade de concorrer: tivesse e quem ia a Harvard receber os dez biliões seria eu.

23 abril 2012

TODOS OS LIVROS


- Qual é o teu favorito?
- Não tenho um favorito. Não há livros separados de outros. Todos os livros que falam do mar, desde a Odisseia até ao último romance de Patrick O’Brian, estão interligados, como uma biblioteca.
- A biblioteca de Borges…
- Não sei. Nunca li nada desse Borges. Mas é verdade o que digo, que o mar se parece com uma biblioteca.
Arturo Pérez Reverte, “O cemitério dos barcos sem nome

11 abril 2012

AL-SAHAF E AS OBRAS DA PARQUE ESCOLAR

Mohammed Saeed Al-Sahaf, que a imprensa estrangeira apelidava de “Ali o comediante”, era o ministro da informação de Saddam Hussein ao tempo da segunda guerra do golfo. O cognome foi-lhe outorgado pelos jornalistas como reconhecimento das suas tiradas absurdas durante os briefings diários organizados pelo governo iraquiano para dar conta dos avanços da tropa doméstica. No dia 8 de Abril de 2003, como habitualmente, Al-Sahaf reuniu a imprensa estrangeira para comunicar que as valorosas tropas iraquianas, alumiadas pela destemida guarda republicana, continuavam a travar a mãe de todas as batalhas e rechaçavam as arremetidas dos cães raivosos invasores a quem seria infligida uma derrota que jamais seria esquecida. Ficaria para a história a patética imagem do ministro a jurar que estavam a desbaratar as tropas estrangeiras e a vencer a guerra no preciso momento em que, qualquer repórter que olhasse pela janela, veria já os tanques da coligação a poucos quarteirões de distância. Bagadad seria tomada pelo invasor poucas horas depois do briefing.
Lembrei-me do ministro da informação Al-Sahaf quando ontem, nos telejornais da noite, ouvi a antiga ministra Lurdes Rodrigues afirmar, perante a comissão parlamentar de Educação, que “o programa da Parque Escolar foi uma festa para as escolas, foi uma festa para os alunos, foi uma festa para a arquitetura, foi uma festa para a engenharia, foi uma festa para o emprego e foi uma festa para a economia”. Quando o Tribunal de Contas deteta despesas e pagamentos ilegais no montante de cerca de 256 milhões de euros e mais de 236 milhões euros relativos a 34 contratos da Parque Escolar não submetidos a visto, quando diz que houve um acréscimo de pelo menos 218,5% nos custos das obras realizadas, relativamente à estimativa inicial e que o dinheiro não chegou, por isso, nem para metade das escolas programadas, ouvir a ex-ministra com aquele ar alienado dizer que os relatórios do Tribunal de Contas teciam fartos elogios à gestão do programa, dá que pensar. O patético Al-Sahaf não faria melhor.

07 abril 2012

BOA PÁSCOA



Apesar da troika insensível e do Passos charlatão; apesar dos sábios da John Hopkins que querem acabar com o calendário e dos de Cambridge a jurar que a última ceia, afinal, foi a uma quarta, apesar de todas estas luminárias em conluio, conspirando contra mim, amanhã, o primeiro domingo após a primeira lua cheia depois do equinócio da primavera, mantendo-me fiel à tradição judaico cristã cá de casa, juntar-nos-emos à volta do cabrito.
Boa Páscoa.

21 março 2012

HOMEM, QUE FAZES TU?



Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre…


Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa…

EPÍGRAFE, Eugénio de Castro, 1864-1944

08 março 2012

ELAS ESPALHAM A DESORDEM

Elas tecem o desacato com engenho, na mansa lentidão dos dias; tão depressa suspiram maleitosas, ensimesmadas e aflitas, como em tudo inventam supérfluos motivos de riso e de alegria.
Elas cantam, rodopiam, dançam, interpretam peças maliciosas e declamam poemas.
Elas confrontam-nos com o rasto do mal, usando perfumes de gardénia, de nardo e de almíscar, odores doces e turvos, a fazerem esvoaçar a roda das saias folhadas, rendadas.
Elas usam nos lábios e nas faces o carmim das rosas selvagens, pondo igual desvario nas vestes e nas ideias.
Elas são altivas e vaidosas, escrevem poesia, discutem filosofia, lêem livros proibidos.
Elas tresandam a heresia com as suas atitudes e ideias pervertidas; provocam com estouvamentos e arroubos.
Elas gostam do luxo.
Elas trazem consigo ideais perigosos, instruem-se, estudam, perseguem a utopia, na constante busca extremada da Luz, em busca do atordoamento do novo.
Elas cultivam a desobediência e os rancores, sarcásticas e vingativas. Regem-se por regras próprias.
Elas questionam os dogmas, duvidam da fé, não cortam a raiz da tentação e das dúvidas.
Elas espalham a desordem.


Adaptado de “As Luzes de Leonor” de Maria Teresa Horta


Leonor de Almeida Portugal, neta dos marqueses de Távora, após o nebuloso processo que devastaria a sua família, foi enclausurada no convento de Chelas, juntamente com a mãe e a irmã, contava, então, oito anos de idade. Por lá ficariam durante dezanove anos até à morte do Rei D. José e ao consequente afastamento de Sebastião José de Carvalho e Melo. O marquês de Pombal tentava, deste modo, calar a descendência dos marqueses de Távora mas Leonor, amante da liberdade e ávida de Luz nunca se aquietou nos espaços lúgubres de Chelas não dando descanso à madre superiora que, vezes sem conta, se queixou ao bispo de Lacedemónia do comportamento indecoroso daquelas em que «corria nas veias sangue envenenado e ruim dos Távoras». Sirvo-me de uma das queixas da prioresa para render a minha singela homenagem a todas as nossas fortes mulheres que, perante as dificuldades, se recusam a claudicar.

22 fevereiro 2012

O BASTONÁRIO DOS ADVOGADOS NO MOTEL

Há dias, enquanto ouvia o doutor Marinho Pinto, naquele seu modo sôfrego, a atropelar-se nos adjectivos, lembrei-me da anedota dos dois juízes: 
Um dia, dois juízes encontraram-se no parque de estacionamento de um motel e repararam que cada um estava com a mulher do outro.
Após alguns instantes de um silêncio constrangido, provocado pelo inusitado da situação, mas, sem nunca perderem a compostura própria de magistrados, em tom solene e respeitoso, diz um deles:
- Nobre colega, não obstante este fortuito imprevisível, sugiro que desconsideremos o ocorrido, crendo eu que o correcto seria que a minha mulher venha comigo, no meu carro, e a sua mulher volte com Vossa Excelência no seu.
Ao que o outro, de modo igualmente cortês, desfiando o rol de salamaleques próprio da sua condição, respondeu:
- Concordo plenamente, nobre colega, que isso seria o correcto, sim, no entanto, não seria justo, levando-se em consideração que vocês estão saindo e nós estamos entrando.
Um dia, estou em crer que maldosamente, alguém me dizia que o Doutor Marinho Pinto, em tempos, tentou enveredar pela carreira de juiz mas, circunstâncias várias concorreriam para que tal lhe não tivesse sido possível. Talvez que tudo isto, como lembraria um novel filósofo da nossa praça, não passe de pura maledicência mas confesso que ao ouvir o Doutor Marinho apelidar de betinhos e betinhas os membros do governo, acusando-os de burocratas que não conhecem o país, imaginei-o juiz, a sair de um motel.

14 fevereiro 2012

S. VALENTIM URBANO E ASSALARIADO.

[…] Abriu a porta de casa e entrou. Havia um cheiro estranho no vestíbulo. Um certo perfume. Almiscarado e doce. […] Estava a meio das escadas e consciente de que o perfume tinha algo de miasmático, quando foi obrigado a parar. Eva estava de pé, à porta do quarto, envergando um pijama de um amarelo incrível com umas calças muito largas. Estava horrorosa e, ainda por cima, fumava um cigarro comprido numa boquilha comprida e a boca estava pintada de vermelho brilhante.
- Meu querido caralhinho – murmurou ela em voz rouca, meneando-se. – Anda cá. Vou chupar-te os mamilos até que me faças vir oralmente.
Wilt virou as costas e fugiu, escadas abaixo […]

Tom Sharpe, “Wilt”

04 janeiro 2012

AS FÉRIAS DA MARIA JOÃO

Maria João Ruela é jornalista. Pivot da SIC, quando não está a ler as notícias, gosta, ao que nos diz, de viajar. Depois, com o que anota no caderninho, “ lugares, pessoas, diálogos e pensamentos” e o que guarda na memória, “cheiros sabores e emoções”, faz um livro de viagens. Parece que está na moda os jornalistas verterem em folha impressa qualquer coisa que lhes dê na gana e as editoras, sempre à cata de negócio, têm aproveitado esse filão. No livro que escreveu, “Viagens contadas”, duzentas páginas de letra avantajada e prodigamente ilustrado, como convém, Maria João fala das suas viagens à Patagónia, aos Himalaias, a Marrocos, à Noruega, aos Alpes, aos Pirinéus, à Ucrânia, à Polónia e à Rússia. Verdade que nos tinha avisado logo no título do livro, mas, ao falar de um tão avantajado número de destinos, o que resulta não é muito diferente de uma dessas revistas de viagens que nos prometem, em páginas de texto ciciado e imagens soberbas, destinos de sonho e aventura. Maria João conta-nos as suas aventuras como o faria, depois das férias de verão, qualquer colega lá do escritório, repentinamente chegada aos prazeres do 1.º mundo, contando às amigas embevecidas as aventuras na Tunísia ou na República Dominicana.
Ao ler este livro lembrei-me de Bruce Chatwin e da inolvidável aventura “Na Patagónia” em demanda do brontossauro e de Paul Theroux, outro viajante crónico, que tomou fora de casa, em Chicago, “O velho expresso da Patagónia”, foi por ali abaixo e só não chegou ao cabo Horn porque a linha férrea termina antes. E lembrei-me também de Elias Canetti que ouviu “As vozes de Marraquexe” e as verteu num livro espantoso. Lembrei-me destes três viajantes inveterados e fiquei com vontade de reler aqueles livros admiráveis que nos legaram.
No seu livro, Maria João, diz-nos que foi num serão, sentada a ver televisão na companhia do marido, o Zé – assim mesmo, o Zé, como se a gente se conhecesse desde sempre e se desse de abraço. Diz ela que ao ver num documentário três jovens, Jim, Tom e Kate, percorrerem a montanha, sempre acima dos três mil metros, rodeados de paisagens, escarpas e glaciares, teve, naquele momento, a certeza que faria o mesmo. Em tempos li que Gabriel Garcia Márquez, teve, durante uma viagem de automóvel, a mesma visão e, diante dele, viu desfilar todo o enredo da sua obra prima “Cem anos de solidão”. Depois foi só parar, fechar-se longe do barulho, e escrever de empreitada todo o livro que lhe valeria um nobel. Eu, que tomo conhecimento destes prodígios, reconheço, humildemente, que não fui, ainda, tocado por essa graça. Sei, até, de ciência certa, que jamais o serei. Eu, que sei o dispêndio de energia para obrar cada linha, olho para estes prodígios e só me vem à memória o poema “Budapeste” de Billy Collins, poeta americano, que começa assim: A minha caneta move-se pela página/ como o focinho de um estranho animal...

02 janeiro 2012

UM NOVO CALENDÁRIO

Uma improvável dupla de sábios da Universidade John Hopkins, encorajada, talvez, pelos samoanos e os toquelauenses, soube-se por estes dias, propõem-se acabar não com um dia como os ilhéus mas com o calendário inteiro. Com efeito, um astrofísico e um economista, considerando que o nosso gregoriano calendário está velho e ultrapassado, lançaram uma campanha para a adoção de um novo calendário com uma nova forma de organizar os dias, fixando datas e permitindo que os feriados, como o Natal e o Dia de Ano Novo, possam calhar sempre a um domingo, todos os anos. Ao que consta continuaria a haver doze meses em cada ano que seria ainda dividido em quatro trimestres iguais de noventa e um dias, acabando a divisão entre anos comuns e anos bissextos. Para se recuperar os dias perdidos com esta contagem a dupla tirou da cartola uma ideia genial só ao alcance dos predestinados: a cada cinco ou seis anos haveria uma semana adicional. Ao novo calendário fixo, que prevê apenas um dia semanal de descanso, são apontadas vantagens laborais e produtivas, além de outros benefícios económicos, como o planeamento estável de férias, salários e calendários escolares e a simplificação de cálculos financeiros.
Ao ler a notícia dos sábios que querem mudar o calendário, lembrei-me da minha avó. A minha avó, que por razões que não interessam ao caso, tinha um carinho especial pelo S. Miguel não perdoaria a quem a privasse do convívio com o santo. A minha avó já morreu há muitos anos, mas lá, onde quer que se encontre, estará, certamente, de atalaia e não permitirá que uma dupla que decidiu esbanjar o dinheiro do empregador com a ideia estapafúrdia de um novo calendário, lhe roube o 29 de Setembro.

01 janeiro 2012

BOM ANO

primeiro dia do annus horribilis

E pronto, eis-nos chegados ao dia um do annus horribilis. Pudesse eu e fazia-lhe – ao annus horribilis - o que os samoanos e os toquelauenses fizeram ao 30 de Dezembro.
Mas não posso!
Por isso e ainda que, para nos dificultar as coisas, este ano seja bissexto, encará-lo-ei bem de frente, e sem vacilar, sem acusar as estocadas ao longo do trajeto, caminharei rumo àquilo que, quero pensar, será um futuro mais justo, mais tolerante, mais probo e mais solidário. Mostraremos àqueles cinzentões do norte do que é capaz um meridional despeitado.
Junta-te a mim!