31 dezembro 2012

CONTO II


Capítulo II
NO TEMPO EM QUE NÃO HAVIA INTERNET NEM PLAYSTATION


A gaveta fechou-se com estrondo e eu fiquei completamente cega. Que saudades do marçano lá da loja, da delicadeza com que abria e fechava as gavetinhas minúsculas de plástico transparente dos mostruários, do cuidado com que nos manuseava, da sensibilidade e orgulho com que nos mostrava aos clientes e lhes falava de nós. Que saudades... Aqui no escuro, sozinha, consigo, por fim, compreender o que li há já muito tempo, li que “a saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora”. Lembro-me que foi num livrinho pequenino mas não me lembro do autor. Talvez nem o tenha conseguido ler, como acontecia muitas vezes, mas estas palavras tão poéticas, que agora me vêm direitinhas à memória, só podiam ter sido escritas por uma pessoa sensível. Naquela altura achei-as bonitas, por isso as recordo, mas não lhes dei uma especial importância, mas agora, aqui fechada, nesta solidão, consigo perceber o que a menina - acho que era uma menina que o dizia - sentiria ao dizê-lo.
Quando comecei a habituar-me à escuridão, que um fiozinho de luz, entrando pela frincha da gaveta, ia combatendo, comecei a perceber que, afinal, não estava sozinha. Antes de mim já outras três tinham tido a mesma sorte, atiradas para a gaveta ainda dentro da caixinha de plástico. Por que não teriam falado? Por que não me teriam dado as boas vindas quando me arremessaram para a gaveta e eu não via nada? “Olá! Não falamos antes porque, entre nós, decidimos que não o faríamos. Quem chegasse teria uns momentos de recolhimento, digamos assim, para se aperceber, talvez devesse dizer para se conformar, da sua nova vida e então, quando o breu desse lugar à penumbra, poderíamos, conversar.” Foi uma bela caneta, toda em madrepérola, quem assim falou. Parece que tinha ouvido os meus pensamentos. “Olá!” respondi.
Dali a pouco ouvimos passos e pouco depois a frincha apagou-se. Agora não passávamos de ténues silhuetas. O barulho da casa foi baixando a pouco e pouco até que se instalou o silêncio. “A parte do dia por que esperamos ansiosamente. Embora quase não se consiga ver podemos falar à vontade e rir às gargalhadas das histórias que contamos. Conta-nos a história de que falaste ontem, caneta primeira” disse a madrepérola. “Caneta primeira?” - admirei-me. “Sim. Decidimos que ficaríamos conhecidas pela ordem em que cá chegamos. Eu, por exemplo sou a caneta segunda, e tu serás a caneta quinta!”. “Caneta quinta? Mas só cá estamos quatro! Porque terei de ser a quinta?” - contestei. “Serás a caneta quinta porque foste a quinta a cá chegar. Talvez não tenhas reparado mas ali ao fundo está a que chegou antes de ti, a caneta quarta”. Então é que reparei. Ao fundo da gaveta lá estava. Embora com dificuldade conseguia-se adivinhar uma caixa ainda meio coberta pelo papel de fantasia Estava ali outra de nós. Talvez a mais taciturna de todas, por isso não tinha ainda dado por ela. “Conta então a história de ontem, segunda” - tornou a madrepérola.
Passou-se já há bastante tempo – começou – por isso pode ser que alguns pormenores não tenham sido rigorosamente como vou contar mas não alterarão, com toda a certeza, a história. Um dia, vi chegar dois clientes. Não tenho grande jeito para adivinhar idades mas não errarei muito se disser que um tinha já passado, há muito, o meio século, o outro era bem mais jovem, talvez filho, ou mesmo neto. Olhavam para nós e iam fazendo comentários acerca do que iam vendo. O mais velho era o que mais falava. Estava constantemente a mostrar ao mais novo pormenores em que, confesso, nunca tinha reparado. De repente, acerca-se de uma bela caneta com aplicações de ouro no aparo, faz um ar pensativo, e começa a recordar: 
Caneta de aparo... aparos … deixa-me sonhar um bocadinho. Aparos, trazem-me à memória a pena, uma chapinha bicuda com rabinho de “pau” que, a espaços que se contavam pelo número de letras escritas num azul retinto, se mergulhava no tinteiro branco de cerâmica embutido no meio do tampo da carteira com assento de dois lugares, onde, putos ainda, nos sentávamos. As calças remendadas, calçados com chancas ou com socos, com “solas” em madeira de freixo e cobertura de duro couro de boi, mas não tão duro que os pés o não conseguissem moldar, ainda que com alguma ajuda do sebo com que o esfregávamos para o impermeabilizar e não deixar entrar a água da chuva ou das poças do caminho que teimávamos em não contornar. Na carteira se aperfeiçoava a caligrafia e se treinava a aritmética. Na carteira nos espantávamos com a valentia dos antepassados e a imensidão do império. Na carteira se levava “bolos” com a palmatória de furinhos e se pendurava, a escorrer, o saco de serapilheira, que depois de transportar cinquenta quilos de batatas de semente Arran-Banner ou Arran-Consul ou mesmo de Portalegre, menos cosmopolita, é certo, mas batata da nossa, servia para nos abrigar da chuva. Sim, porque o guarda-chuva, de grosso pano preto com cacheira de madeira e varetas maciças que davam ótimos instrumentos para jogar ao espeto, não era coisa de crianças, ou melhor, não era coisa para todas as crianças. A chapinha bicuda ou aparo, parecido com aquele que nos causou pavor quando éramos pequenos e nos riscaram o braço, logo abaixo do ombro, que nos deixou para sempre uma cicatriz como prova da nossa vacina contra o sarampo – sarampo, sarampêlo, sete vezes vem ao pêlo. Foi também a primeira forma de tatuar que conheci quando espetei no joelho, um, carregadinho de tinta.
À memória vem-me ainda a minha primeira professora, que mandou o meu pai comprar a minha primeira pena e com ela me ensinou caligrafia no caderno de duas linhas. A Dona Fernanda era uma simpática velhinha. Seca de carnes, vestia sempre de preto, um comprido casaco com uma textura em bordado de alto-relevo e tom brilhante, que apenas deixava espreitar uns sapatinhos de salto baixinho como ela, parecidos com os da Minie ou da Olívia Palito, figuras fantásticas que nos faziam sonhar quando éramos pequenos. Líamos e relíamos as histórias aos quadradinhos, nas revistas que os filhos do senhor Coutinho, aquele que construiu o prédio onde antes era o Mercado Municipal e que agora querem deitar abaixo, nos davam para passar o tempo. 
Não havia internet nem playstation e televisão só no café da Tia Lina. As contas e as redacções eram feitas numa pedra fininha de xisto cinzento, a lousa, que se partia quando caía ao chão e só ficava pretinha quando as oliveiras tinham azeitonas maduras. Esfregávamos e besuntávamos a nossa lousa, que ficava com o cheiro da carroça do azeiteiro da ponte quando levava a "venda" às casas da aldeia. Mas o que nos faltava em tecnologia sobrava-nos em engenho. Roubavam-se lá em casa os preciosos rabos de bacalhau que atados a um fio barbante eram o isco perfeito para apanhar dúzias de caranguejos no Poço Pescadouro. Finda a pescaria preparava-se a confeção: sobre um molho de caruma colocavam-se os pobres crustáceos que, parecendo adivinhar a sua sorte, faziam tudo por fugir antes que o lume os assasse. Aqueles que o conseguiam não poderiam vangloriar-se da façanha por muito tempo pois logo uma mão providencial aparecia para o devolver ao seu lugar. Quando não íamos à pesca inventávamos sofisticadas ratoeiras para apanhar pardais ou então atacávamos os pomares. Com um misto de fome e de vontade de aventura, escalávamos os altos muros da quinta do Ganhão para roubar as apetitosas maçãs que, de outro modo, dificilmente provaríamos. Os mais corajosos de entre nós metiam-se noutras aventuras bem mais temerárias. Noite cerrada, amoitavam-se na leira do Vieira munidos de pesados torrões esperando pelo cabo da Guarda Nacional Republicana que haveria de passar por ali montado na sua pachorrenta Famel Zundapp a caminho de casa. Durante o dia, quando passava na estrada, com a farda cinzenta e aquele redondo capacete de chapa e a grande espingarda Mauser, com uma assustadora baioneta que brilhava ao Sol, pousada no quadro da bicicleta, aterrorizava quem com ele se cruzava. Agora que não tinha a ajuda da farda iria pagá-las. O barulho da fumarenta Famel quando descia os Carregais era o nosso sinal. Três minutos de tensão, medo e coração a bater, até se ver a luzinha a sair da curva do Vieira. Então, era só esperar uns segundos até que se encontrasse no nosso raio de ação e toca a despejar as “munições”. Depois era fugir pela noite dentro, atravessando o rio da Fonte Grossa, pelos carreiros que se conheciam de cor e esperar em silêncio, quase sem respirar, no meio do centeio ou do azevém, não fosse o homenzinho ter coragem para nos perseguir no escuro.
Lembro-me agora que a Dona Fernanda usava sempre um barrete à Cossaco, tal e qual como o daqueles homens da Tundra que caçam lobos, lebres e raposas com ajuda de uma águia. Ela não caçava lebres nem raposas e muito menos lobos, mas fazia muito mais do que isso: mantinha na mesma sala uma “alcateia” em silêncio, das nove às três, com quarenta “lobos e raposas” dos sete aos catorze, e, da primeira à quarta classe, ensinando a todos as contas, a leitura, a história, a geografia e a caligrafia com a pena de aparo. Chegava todos os dias às oito e meia na camioneta de carreira do Sordo. Saía na paragem do Lima e às três e meia partia na mesma camioneta, rumo a casa, ali para os lados da Bandeira.
Aparo, pena, Dona Fernanda… quantas recordações que pensava estarem completamente esquecidas…
É do que me lembro. O contador recordava com tal prazer a história que, de quando em vez, eu via muito bem, os seus olhos brilhavam. O mais novo, esse, não desviava os olhos do outro. Quase nem pestanejava. Parece que tinha medo de perder alguma peripécia da história.
Bom, já é tarde - disse a madrepérola -, ficamos por aqui. Amanhã continuamos...


Depois do primeiro capítulo publicado há cerca de um ano, este foi, digamos assim, escrito a duas mãos. Só conseguiu ver a luz do dia com a prestimosa ajuda do meu irmão Chico. Vamos lá pensar no próximo. Quem se chega à frente?

29 dezembro 2012

BOM ANO



Quem nos pôs aqui sabia muito bem o que estava a fazer. Senão reparem: podia ter-nos posto em Mercúrio. É tão telúrico como nós. Mas não o fez. Se fossemos lá colocados, a cada oitenta e oito dias, nem sequer a cada trimestre, a cada oitenta e oito míseros dias, lá estávamos nós a desejar tudo de bom, como agora se diz - não sei aonde vai o pessoal beber estas modas; é quase como os políticos e os locutores de televisão que dizem «Há cinco anos atrás…» ainda gostava de saber como será há cinco anos à frente – bem, dizia eu, desejar tudo de bom a toda a gente. E isso cansava. Era dizer quatro vezes por ano – ano dos nossos, claro - a mesma coisa. Imagine-se o pessoal a comer as passas e a desejar a queda do governo e ter, ainda que na pior das hipóteses, de repeti-lo por dezasseis vezes antes do dito cair. Uma eternidade. Não dá. Além da caloraça que por lá faz – muito pior que na Amareleja - a vida tornava-se muito repetitiva. Tão repetitiva e enfadonha que o Manuel de Oliveira estava por estes dias a fazer quatrocentos e trinta e dois anos; notem bem, quatrocentos e trinta e dois. Assim não dá. Risque-se Mercúrio!
Podia, então, ter-nos posto em Marte. Ficaríamos mais aconchegadinhos, é certo, porque o condomínio é bem mais acanhado, mas até dava jeito para combater o frio que por lá iríamos rapar. Mas não nos pôs. E fez muito bem! Seria uma seca ter de esperar quase dois anos dos nossos para desejar tudo de bom aos amigos. Imagine-se ter de esperar dois anos para pedir a queda do governo… É verdade que se poupava em passas mas não compensava o que se gastava em tédio. Note-se que lá o Oliveirinha dos filmes era ainda um jovem de pouco mais de cinquenta anos. Demasiado parado: risque-se Marte!
Podia ainda ter escolhido Plutão mas ainda bem que não o fez. Primeiro porque não iríamos ganhar para aquecimento e depois porque haveria de chegar – como chegou – a altura em que os sábios da astronomia haveriam de desclassificá-lo e seria de muito mau gosto a gente viver num planeta que, veio a saber-se mais tarde, não passava de um plutóide. Assim mesmo, plutóide, que, para todos os efeitos, não passa de uma forma gentil de dizer que agora Plutão é um calhau.
De modo que, riscando-se também Plutão e subtraindo os gasosos, o que sobra? Pois é, quem nos pôs aqui sabia, realmente, o que estava a fazer. É o sítio ideal. O único onde um “ano” vale precisamente um ano, nem mais, nem menos. E um ano, todos o sabemos, nem é demasiadamente curto nem excessivamente longo. É por isso que, no dealbar de um novo ano, cá estou eu a desejar que os teus sonhos se realizem e os teus pesadelos se não cumpram.


Vamos agora dar a palavra a quem, realmente, merece. Carlos Drummond de Andrade dizia isto muito melhor do que eu digo:

Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar
e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação
e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar
que daqui para diante,
vai ser diferente.

22 dezembro 2012

CONTO DE NATAL



O SONHO DO SEBASTIÃO

Faz quase dois anos que a sua vida é uma peregrinação pelas oficinas, pelos estaleiros e pelas quintas das redondezas. Quando arranja um pequeno trabalho – apanhar a fruta num pomar, reparar um muro danificado pelas asperezas do último inverno, preparar os cascos que hão de receber o vinho novo – a vida como que ganha um novo significado. É vê-lo, manhã cedo, partir para o trabalho cabeça bem ao alto distribuindo sonoros cumprimentos a todos os que com ele se cruzam. E enquanto labuta imagina a alegria dos pequenos quando, à tardinha, ouvirem o trinco da cancela. Imagina a alegria dos seus e pensa em todos os outros que à noite irão para a cama de estômago vazio e não consegue evitar que os olhos se lhe inundem. E então chora, chora por si, chora pela Mariana que é a âncora da família, chora pelos seus pequenos e chora por todas as crianças do mundo.
Hoje, Sebastião, não conseguiu trabalho. Depois do magro almoço, Mariana agasalhou os filhos, corrigiu o casaco ao marido e impô-los pela porta fora: «Ala, vão passear, ver os pássaros, e não voltem antes do anoitecer!» E os três lá foram, felizes, pelos campos fora. Nalgumas covas mais abrigadas resistiam ainda alguns farrapos da neve caída na véspera que logo era transformada numa bola pelo primeiro a descobri-la. E admiraram-se com a perspicácia das trutas a subir o ribeiro. E seguiram, de nariz no ar, as revoadas de tordos de azeviche, espantando-se com as suas acrobacias aéreas. E, sempre que os conhecimentos de botânica do pai o permitiram, catalogaram as espécies desconhecidas que se lhes atravessaram no caminho. Até que chegou a hora. O sol, que andou tímido o dia todo, iria esconder-se não faltava muito. As crianças atiraram as últimas pedras à água do ribeiro e os três, empreenderam a viagem de regresso. Ainda as primeiras casas da aldeia não se viam e já, prodígios da meteorologia, os mil cheiros do natal, amplificados pela frugalidade imposta aos seus estômagos, chegavam até eles estugando-lhes o passo.
A mãe estava na cozinha. Envolta numa nuvem de vapor, que os três aspiraram sofregamente, preparava as últimas iguarias da ceia de Natal. Com as verduras da horta, os bicos da capoeira e o cabaz da assistência social, Mariana fazia maravilhas. «Vieram mesmo a tempo. Vá lá, lavem essas mãos e essas caras imundas e sentem-se que o jantar já não demora.» E foi um lauto jantar. As crianças podiam repetir as vezes que quisessem. E comeram batatas e as couves mais tenras da horta e escamudo como se fosse do melhor da Noruega e galinha com arremedos de peru e rabanadas e arroz doce e nozes e pinhões. O pai teve até direito a vinho quente com açúcar. Até que todos se fartaram. Agora era esperar a hora de abrir as prendas que a mãe, carinhosamente, tinha depositado debaixo do pinheirinho, armado num canto da cozinha. E os quatro, muito juntinhos, foram sentar-se à volta do borralho. A mãe, como sempre fazia, começou a contar histórias de Natal. Enquanto os pequenos bebiam avidamente as palavras, Sebastião, embevecido, olhava a mulher e pensava que não fora ela e há muito que a família se teria desmoronado. E enquanto pensava, as palavras do conto iam-se afastando, afastando, até não serem mais que um rumor impercetível e, ainda o Garrinchas não tinha chegado ao adro da ermida da Senhora dos Prazeres, já Sebastião, ajudado pelo vinho quente, adormecera.
Viu-se numa sala imensa. Na parede do fundo uma figura de mulher com os olhos vendados. Na mão esquerda segurava uma balança, na direita empunhava uma espada. Na metade oposta da sala, resguardada por uma sólida balaustrada de madeira, a assistência aguardava. Sebastião olhava à esquerda e à direita e via outros homens que como ele se recusavam a desistir. Até que o juiz, vestido de negro, com uma farta cabeleira branca aos caracóis que lhe chegava aos ombros, mandou entrar os réus. A porta abriu-se e começaram a entrar, cabisbaixos, os políticos que há décadas governam o país. Alguns conhecia-os, outros nunca os tinha visto e havia até alguns dirigentes de grandes empresas que nunca imaginou terem sido ministros. O espaço que lhes estava destinado ficou completamente cheio e a assistência, sem conseguir reprimir mais o asco por aquela gente, ia acusando, em surdina, um e outro: «Está a ver aquele ali? Sim, aquele, é o diretor de uma empresa que faz estradas e pontes e antes era ministro; e aquele ali, o do fato azul, mal chegou a ministro empregou toda a família no ministério. A filha acabou o curso e no dia seguinte estava a dirigir um gabinete como se tivesse vinte anos de experiência; olhe aquele, o do cabelo branco, esteve meia dúzia de anos no governo e está reformado. Ganha mais num mês que um de nós em dois anos. Um de nós, dos que temos emprego, claro; e aquele pulha, aquele magrinho, não é o do banco?»… Até que a voz tonitruante do juiz se fez ouvir: «Silêncio!»
Começou, então, por perguntar o nome a cada um dos acusados mesmo àqueles que todos na sala conheciam e, após obter a resposta, com o indicador espetado e semblante acusador, continuava: «Quando era governante, antes de tomar as decisões que viria a tomar, sabia que elas provocariam a crise que hoje afeta o nosso país e, mesmo assim, tomou-as. Hoje, como consequência das suas determinações, há crianças que passam fome e outras que desmaiam nas aulas por falta de alimento. Tem alguma coisa a dizer em sua defesa?» Quase todos continuaram no seu mutismo receoso e aqueles que ousavam encarar o juiz faziam-no com tanto temor que apenas lhe saíam algumas frases inaudíveis para a assistência mas que o juiz rebatia de imediato. Quando todos falaram, a sala quedou-se em silêncio. O juiz sentenciou então: «Os réus que hoje se apresentaram neste tribunal são culpados pelo estado a que o nosso país chegou. Não são merecedores de piedade. Defraudaram o povo que acreditou neles. Cumprirão todos pena de prisão.» A alegria na assistência foi esfuziante. Deram-se vivas e cantaram-se hossanas e nesse momento na cozinha da casa do Sebastião todos viram o sorriso que se lhe desenhou no rosto. As crianças concluíram que o menino Jesus, finalmente, tinha nascido mas a mãe teve a certeza que naquele momento, Sebastião tinha apanhado aqueles que nos tinham trazido até aqui, e todos eles iriam pagar pelas tremendas maldades que tinham cometido.