28 dezembro 2009

BOM ANO

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SÍSIFO

Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga, Diário XIII

MESMO SEM "BIG BROTHER"

O mundo, já o sabemos, é um lugar perigoso para se viver. Se há países que encaram este problema com uma certa despreocupação, outros há que o levam muito a sério. Por razões óbvias mas que não vêm ao caso, os Estados Unidos da América deve ser o país que, de entre todos os países do mundo, suscita maiores inimizades. De modo que tentam, de uma forma obsessiva, diga-se, estreitar o mais que podem as portas por onde pode entrar o perigo. Ainda não as conseguiram fechar totalmente mas acalentam uma secreta esperança de o virem a alcançar, mesmo que na jornada o revés espreite a cada virar de esquina. Quando pensavam que o sistema de segurança nacional era infalível lá vem o Mohamed Atta lembrá-los que há ainda muito trabalho a fazer.
É depois do vil atentado de 2001 que começam a surgir evoluídos programas de computador que conseguem escrutinar os milhares de milhões de mensagens que circulam pela net – “… os computadores […] forçavam a sua entrada em sistemas de dados protegidos..." – à procura de indícios que os levem à descoberta de grupos hostis que possam atentar contra a segurança da nação. De um modo simplista diríamos que o que esses programas fazem é procurar palavras ou associações de palavras que possam configurar uma mensagem susceptível de ter sido escrita ou enviada por alguém que possa fazer perigar o american way of life. Estes modernos Big Brother terão atingido um tal grau de especialização que conseguem, literalmente, medir o pulso a uma nação. Pelos vistos, o modo como escrevemos e as palavras que em cada momento aplicamos na escrita diz muito do nosso estado de espírito do momento, isto é, quando estamos contentes empregamos palavras que não empregaríamos se estivéssemos tristes, e vice-versa, de modo que, em cada momento, é possível saber o grau de satisfação dos habitantes de uma nação. Ora qualquer governante “moderno” que se preze não desdenhará possuir sempre à mão uma informação deste tipo, caso contrário terá de se guiar por conhecimentos empíricos que nem sempre resultam – hoje o Benfica ganhou ao Porto, amanhã aumentamos os impostos que o pessoal nem nota.
Sempre achei estranho que o Sócrates, um governante “moderno” e todo virado para o markting e para as cibernéticas, nunca tenha mostrado interesse por esta poderosa ferramenta. Sempre achei estranho. Até hoje.
Pelos vistos circula pela net há já uns meses mas só agora chegou cá. A história é a seguinte: Jorge Viegas Vasconcelos era presidente da ERSE, Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, um organismo que praticamente ninguém conhece e que, em boa verdade, dos que conhecem, poucos saberão para que serve. O senhor Vasconcelos, a dado passo, pediu a demissão do seu cargo porque, segundo consta, queria que os aumentos da electricidade ainda fossem maiores. Tudo bem, a sua não venceu e o homem pediu a demissão. Ora, quando alguém se demite do seu emprego, fá-lo por sua conta e risco, não lhe sendo devidos, pela entidade empregadora, quaisquer reparos, subsídios ou outros quaisquer benefícios. Porém, com o senhor Vasconcelos não foi assim. Na verdade, ele vai para casa com 12 000 euros por mês – ou seja, 2.400 contos – durante o máximo de dois anos, até encontrar um novo emprego. E aqui, já perplexos, perguntamos: «Então o senhor demitiu-se, isto é, despediu-se por vontade própria, e ainda fica a receber 12 000 euros por mês? Quem mais, neste país, se despede a ainda fica a receber?» Quando alguém, enojado pelo sucedido, perguntou ao ministro da Economia, como era possível que acontecesse tal coisa, a resposta veio clara: «O regime aplicado aos membros do conselho de administração da ERSE foi aprovado pela própria ERSE e de acordo com artigo 28.º dos Estatutos da ERSE, os membros do conselho de administração estão sujeitos ao estatuto do gestor público em tudo o que não resultar desses estatutos». Isto é, sempre que os estatutos da ERSE foram mais vantajosos para os seus gestores, o estatuto de gestor público não se aplica ou, dizendo de outra forma: o senhor Vasconcelos e os seus amigos do conselho de administração, apesar de terem o estatuto de gestores públicos, criaram um esquema ainda mais vantajoso para si próprios, como seja, por exemplo, ficarem com um ordenado milionário quando resolverem demitir-se dos seus cargos. Como alguém dizia, trata-se, obviamente, de um escândalo, de uma imoralidade sem limites, de uma afronta a milhões de portugueses que sobrevivem com ordenados baixíssimos e subsídios de desemprego miseráveis. Trata-se, em suma, de um desenfreado, abusivo e desavergonhado abocanhar do erário público.
Pois é, depois de saber isto compreendo o Sócrates: para quê o Big Brother se já sabemos o estado de espírito dos portugueses?

22 dezembro 2009

FELIZ NATAL

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A PALAVRA MAIS BELA

Fui ver ao dicionário de sinónimos
A palavra mais bela sem igual
Perfeita como a nave dos Jerónimos...
E o dicionário disse-me NATAL.

Perguntei aos poetas que releio:
Gabriela, Régio, Goethe, Poe, Quental,
Lorca, Olegário... e a resposta veio:
Christmas... Noel... Natividad...Natal...

Interroguei o firmamento todo!
Cobras, formigas, pássaros, chacal!
O aço em chispa, o «pipe-line», o lodo!
E a voz das coisas respondeu NATAL.

Cânticos, sinos, lágrimas e versos:
Um N, um A, um T, um A, um L...

Perguntei a mim próprio e fiquei mudo...
Qual a mais bela das palavras, qual?
Para quê perguntar se tudo, tudo,
Diz Natal, diz Natal, e diz Natal?!

Adolfo Simões Müller

21 dezembro 2009

DUAS BOMBAS A BORDO

A história foi contada por John Allen Paulos, professor universitário de Matemática em Filadélfia. Um empresário, cujos negócios reclamavam constantemente a sua presença nos mais variados locais do globo, alarmado com a falta de segurança nas viagens aéreas e com as preocupantes notícias de tomadas de aviões por terroristas a soldo de organizações apostadas em subverter a ordem estabelecida, decidiu fazer algo em prol da defesa da sua integridade física.
Na semana seguinte teria de se ausentar novamente para uma área do globo de onde chegavam notícias pouco animadoras em matéria do cumprimento da lei e da ordem. Começou então por telefonar para a agência de viagens. Queria saber qual a probabilidade de haver uma bomba a bordo de um avião. O funcionário da agência achou a pergunta estranha, mesmo para os tempos que corriam, mas lá lhe disse que a probabilidade de isso acontecer era muito baixa, não mais do que 1 para 10 000. O empresário, parecendo não ficar muito satisfeito com a resposta, agradeceu e desligou. Pouco depois o telefone da agência voltou a tocar. Era novamente o senhor da bomba. Agora queria saber qual seria a probabilidade de haver duas bombas a bordo do mesmo avião. Se já a primeira pergunta lhe tinha parecido disparatada esta ainda mais, mas, conhecedor do cálculo de probabilidades, o funcionário da agência de viagens lá lhe foi dizendo que a probabilidade de haver duas bombas a bordo do mesmo avião seria o quadrado da probabilidade de haver apenas uma, logo, não mais do que 1 para 100 000 000. Agora sim, o industrial ficou contente com a resposta. Agradeceu, agora de uma forma mais expansiva, e desligou.
Algum tempo mais tarde, o funcionário da agência de viagens leu num jornal que num aeroporto tinha sido preso um passageiro que se preparava para embarcar com uma bomba na bagagem. Quando a polícia o interrogou, disse que levava a bomba na mala apenas para diminuir o risco de haver uma bomba a bordo.
Lembrei-me desta história quando li um estudo onde se dava conta dos proventos auferidos pelos gestores da nossa praça. Apesar de levarem para casa bem mais que os seus colegas Japoneses, Finlandeses ou Noruegueses, estranhei aquelas quantias tão magras para quem tem a maçada de dirigir grandes empresas – ainda que por vezes seja para arruiná-las – de modo tentei aprofundar a coisa. E lá estava: tal como o empresário cagarolas – ou previdente, não sei, nem consegui apurar – que viajava com uma bomba na mala para baixar a probabilidade de um atentado a bordo, também o autor do estudo juntou à amostra todo o bicho careta que se intitula de gestor, parece que para baixar os números, e foi naquilo que deu. Caso contrário os resultados teriam sido bem mais consonantes com aquilo que, infelizmente, se vai ouvindo dizer. Se não note-se: em média os nossos gestores auferem 230 ooo euros por ano, contas redondas, diz o estudo, mas isto é quando se introduz o “factor da bomba” porque se assim não fosse os números seriam assustadores. Sim, assustadores. Se não vejamos: considerando apenas os gestores de todas as empresas cotadas na bolsa o pecúlio subiria para quase o triplo deste valor, em rigor 595 000 euros, o que nos colocaria em segundo da lista só ultrapassados pelos abastados gestores americanos, mas, se apenas se considerassem os gestores das empresas que compõem o PSI 20concluir-se-ia que, em média, cada gestor leva todos os anos 777 000 euros para casa, ou, para se compreender melhor a desumanidade do número, cada gestor ganha tanto num ano como um trabalhador auferindo o salário mínimo, contando já com o aumento prometido e os 14 ordenados anuais, ganharia em 3 vidas – isso mesmo, 3 vidas, 117 anos de trabalho.

24 outubro 2009

O REVISOR SARAMAGO

Quando, anteontem, vi o Saramago com aquele seu estilo patusco de esganarelo perorar sobre os malefícios que a leitura da Bíblia pode causar nas criancinhas e invectivar o Deus sanguinário e vingativo dos cristãos, veio-me à memória uma célebre tirada de um antigo primeiro ministro. A coisa passou-se, se a memória não me atraiçoa, na primeira metade da década de noventa do século passado. O dito primeiro-ministro nutria pelo Presidente da República de então um ascoroso ódio de estimação, no que, diga-se de passagem, era correspondido. Quando o mandato do presidente se aproximava do fim o primeiro-ministro, querendo dar mais uma ferroada no rival, dizia e repetia: "- Vamos ajudar o senhor Presidente da República a terminar o seu mandato com dignidade".
José Saramago, que é um escritor maravilhoso, que cá deixará pérolas como “O Memorial do Convento”, ou “Levantado do Chão”, ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, só para citar alguns, que ganhou um mais que merecido Nobel da Literatura, que na Academia Sueca, diante do Rei Carlos Gustavo, proferiu o mais belo discurso que aquelas vetustas pedras já ouviram e que começava assim: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”, José Saramago que criou personagens admiráveis como Baltasar e Blimunda, José Saramago que construiu tudo isto não conseguiu, ainda, ver que nem mesmo um prémio Nobel tem que ter sempre opinião sobre tudo. E vai daí continua com aquela sua mania irritante de tecer aquelas opiniões definitivas sobre tudo e sobre nada. Com a idade esta mania vai-se acentuando e as suas palavras que eram escutadas com deferência começam a ser uma maçada. A continuar assim e com certeza não faltará muito até que ouçamos: “- Vamos ajudar o Saramago a terminar os seus dias com dignidade”.
Ou será que Saramago, qual Raimundo Silva, revisor d’A História do Cerco de Lisboa, cansado de ver como a História cada vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um "sim" um "não", subvertendo a autoridade das "verdades históricas”?

29 agosto 2009

AS ADMIRÁVEIS NOVAS LEIS

De quando em vez faço a minha visitinha ao shopping. Não por livre e espontânea vontade, diga-se em abono da verdade, mas cumprindo o meu dever de consorte fiel e pai extremoso. Lá chegados, enquanto as mulheres da família calcorreiam as lojas de vestimentas e outras bugigangas à procura não sei bem de quê – será que elas sabem? Tenho-me questionado sobre isso mas ainda não ganhei coragem para lhes perguntar: posso não gostar da resposta –, os homens recolhem-se a outros santuários. Normalmente escolho as livrarias. A Fnac do Norte Shopping é a minha preferida. Aquele recanto com o banco corrido, junto dos livros de bolso, não sendo embora o cúmulo do conforto, é o local ideal para se passar umas horas, calmamente, embrenhado na leitura.
Na semana passada lá fui. Dei uma vista de olhos pelas novidades, apontei algumas obras para acrescentar à lista e, a certa altura, deparei-me com um livro que me prendeu a atenção: “A Ministra” de Miguel Real. Peguei nele e fui sentar-me no banquinho. O tempo das compras das mulheres deu-me para ler quase metade da obra. É um livro pequeno mas duro. Pelas suas páginas perpassa o ódio, a malvadez, a intolerância e a fealdade. Fala de uma mulher seca, que nunca conheceu o amor, de passado trágico e futuro marcado pelo desejo de auto-afirmação; uma mulher de mentalidade despótica, adversa à espiritualidade dos valores, crente de que a única dimensão do bem reside na sua utilidade social; uma mulher cuja especialização académica consiste na manipulação de estatísticas, moldando a realidade à medida dos seus interesses; uma mulher que usa o trabalho, não como forma de realização, mas como modo de exaltação do poder próprio, criando, não o respeito, mas o medo em seu redor; uma mulher ensimesmada, arrogante, feia e triste, que ama a solidão e despreza os homens; uma mulher autoritária e severa consigo própria, imune ao princípio da tolerância; uma mulher que ambiciona ser Ministra.
Quando as mulheres me chamaram peguei no livro e restitui-o ao escaparate. Talvez um dia passe por lá e ganhe coragem para ler o resto.
No regresso, enquanto pensava naquilo que tinha lido, veio-me à memória um episódio que em tempos alguém me contou: Ana K. – assim mesmo, chamar-lhe-ei Ana K. por tudo o que de Kafkiano tem a história – é uma jovem professora. Um dia, depois de deixar o filhinho de tenra idade no infantário, meteu-se no carro e rumou à escola. Enquanto se afastava pensava na criança e não conseguia suster as lágrimas que teimosamente lhe escorriam pela face. Quando chegou à escola pode, finalmente, desabafar com uma amiga. O filho estava com febre. Ela sabia que deveria ficar com ele em casa. Sabia que a criança iria sofrer se ficasse todo o dia na escola. Sabia que nas condições em que se encontrava necessitava dos cuidados da mãe. Mesmo assim, levou-o. Quando a amiga lhe perguntou porque é que tinha feito aquilo, Ana K. respondeu: Tenho que pensar na minha avaliação. Sabes que adoro a minha profissão, dou sempre o meu melhor. Na última avaliação fui chamada ao Director que me disse precisamente isso, que tinha feito um óptimo trabalho com resultados excepcionais, sempre atenta às dificuldades dos alunos, pensando em estratégias para as debelar, infelizmente, tinha uma má notícia para me dar: não iria obter uma classificação que me permitia singrar na carreira. Fiquei atónita. Então depois de tudo o que acabou de me dizer? É verdade – disse ele –, fez tudo isso mas faltou um dia. Mas foi para ficar com o meu filho que estava doente – respondi-lhe. Nós sabemos de tudo isso, infelizmente há duas professoras com a mesma classificação mas a quota comporta apenas uma de modo que a única diferença entre os dois desempenhos é esta falta que, embora saibamos estar justificada, é uma falta. Saí dali revoltada com tamanha injustiça mas, a vida continuou. Hoje o meu filho precisava de mim para ficar com ele em casa mas não posso arriscar-me a novo percalço na avaliação de modo que estou aqui com um enorme peso na consciência por saber que vai passar um dia penoso no infantário.
Depois de ouvir aquela história imaginei uma equipa de legisladores a criarem uma lei que, de tão cruel, não pode ter sido feita a pensar em pessoas: irrepreensivelmente alinhados numa sala espartana, sem qualquer adorno que lhe desse um pouco de calor, uma equipa de cyborgs redigem, com mecânica eficiência, uma lei que irá reger a avaliação da professora K. e de todos os outros milhares de professores anónimos. O criador dos cyborgs, na sua programação, não lhes soprou qualquer porção de tolerância e assim, nas leis que eles criam, não se vislumbrava qualquer indício de humanidade.
Talvez passe pela Fnac para ler o resto d’A Ministra: nunca se sabe quando não encontro, na parte que ainda não li, a resposta à pergunta que me atormenta.

09 agosto 2009

NÃO É POR SENILIDADE NÃO!

O meu empirismo já há muito aí me tinha levado. Sim, a razão não poderia ser outra, mas, acobardado pela reacção de hilaridade que, pela certa, despertaria nas pessoas se o revelasse, tomei a decisão de guardar a descoberta só para mim. Mas agora que mais alguém chegou à mesma conclusão e o plasmou, em letra de forma, num livro de grande tiragem, posso, finalmente, cantar aos quatro ventos que “ […] se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até ao fim da vida”.(1) Tomem lá! Sempre que, pela enésima vez, repetir uma história, não voltem a chamar-me gagá, porque na realidade a história não é a mesma, a vossa fraca capacidade de discernimento é que não conseguiu captar as leves nuances.

(1) in leite derramado, Chico Buarque

30 julho 2009

AVIÕES DE PAPEL

Não é costume, mas ontem, mal começou o espectáculo montado para apresentação do programa eleitoral do PS, parti à sua procura. Nisto, como de resto em quase todas as coisas, o melhor é ir às fontes. E lá fui. Abri a página do partido, muito agradável, diga-se, dei uma vista de olhos pelas notícias, mas qualquer coisa me prendeu a atenção que me esqueci completamente do programa do governo: Portugal […] evolui da manutenção para o fabrico de aviões. Olá, isto interessa-me. Não que ainda sonhe em ser piloto. Não, o meu sonho é como o do poeta: quem me dera voar e ter asas, ai deve ser do melhorzinho que existe. Continuei a ler a notícia, de resto, escrita com base num discurso de José Sócrates, por isso confiável – é o nosso primeiro-ministro, que diabo –, e a minha estupefacção ia aumentando quando soube que o investimento […] significa “intensidade tecnológica de know-how e inserção de Portugal no contexto da economia global, num dos sectores de maior investigação e desenvolvimento. A música para os meus ouvidos continuava e sentia começarem a germinar na minha cabeça visões de futuro: um salto tecnológico no nosso país. A partir daqui, Portugal fabrica aviões. Cá está, deixaremos em paz as caravelas e embarcaremos, por fim, rumo ao espaço: Há muitos anos que Portugal devia ter entrada nesta aventura da construção de aviões, porque exige outro know-how, outro saber e outra tecnologia que fica agora aqui sedeado. Ah, finalmente, alguém com visão de futuro que nos vai tirar deste marasmo: Vamos atirar-nos ao trabalhar para que aqui […] nasça um centro aeronáutico que faça uma competição leal com o que há de melhor no mundo. Faltavam apenas duas linhas para acabar a notícia e via já alguém a continuar o trabalho de D. João II. Já não era sem tempo, que diabo. A notícia terminava dizendo que a Embraer pretende instalar duas fábricas no parque industrial aeronáutico de Évora, uma delas de estruturas metálicas e outra para produzir materiais compósitos.
Tive um patife de um professor que quando nos entregava os testes gostava de fazer um pequeno comentário acerca de cada um deles. Normalmente para amesquinhar os alunos, diga-se. Lembro-me que um dia ao entregar o teste a um aluno da turma, começou o seu comentário por dizer que o mesmo estava irrepreensível: o seu teste é o mais bem organizado da turma, ninguém escreve de uma forma mais clara que o senhor, as folhas são de uma limpeza imaculada, o teste é perfeitamente perceptível para quem o corrige, aliás, tão perceptível como este não há outro na turma. Tenho apenas a referir um pequeno senão: o seu teste tem cinco. Verdade se diga que já há muito a turma sabia que aqueles louvores prévios não deviam ser para levar muito a sério. Não era a primeira vez – nem seria a última, com toda a certeza – que o desavergonhado enganava os incautos alunos, mas que diabo, quem, no seu perfeito juízo, iria resistir àquele chorrilho de encómios? Ontem, depois de ler a notícia dos aviões do Alentejo lembrei-me do professor do teste irrepreensível: Então uma fábrica de estruturas metálicas e outra para produção de materiais compósitos é construir aviões?

26 maio 2009

QUANDO CHEGAR A CASA...

Foi-me contado pela Directora de Turma. Leandro Miguel – nome fictício, roubado daqui –, aluno do sétimo ano de escolaridade, andava, nos últimos tempos, a comportar-se de um modo que requeria a ajuda da família para regressar ao são convívio da turma. A mãe foi chamada e, no dia aprazado, lá compareceu na escola. A Directora de Turma começou então a desenrolar o novelo das preocupações dos professores pelo comportamento do Leandro. Ainda o relato não estava concluído e já a mãe, salomónica, afirmava: - Bou-o foder! Apercebendo-se do ar varado da professora a mãe lá emendou: -Desculpe minha senhora mas quando chegar a casa bou-o foder!
Depois de ouvir este relato sou obrigado a concluir que Natália Zarubina, a mãe da Alexandra, não tem razão nenhuma quando diz que os portugueses não sabem educar os filhos e deixam-nos fazer tudo o que querem. Os métodos é que são diferentes: Natália educa a filha à chapada e a mãe do Leandro fode-o quando chega a casa. Eu sei porque é que a Natália disse isso: via-se à légua que já tinha um grãozinho na asa. A televisão ainda não tem cheiro – lá chegaremos –, caso contrário o hálito da mulher atiraria qualquer abstémio de costas. E não sou só eu que o digo. O Milhazes, que percebe disto mais do que ninguém, diz o mesmo.

23 maio 2009

A CUIDAR QUE AS FLORES O APLAUDIAM

Ontem – se calhar sem avisarem como já se vem tornando um hábito, vá lá saber-se porquê –, o primeiro-ministro, a ministra da educação e o ministro das finanças apareceram na escola António Arroio para, ao que consta, aporem as suas assinaturas num pindérico contrato de pedreiro para umas obras no edifício. O acto não tinha dignidade suficiente para merecer a presença de mais do que um secretário de estado mas o governo decidiu obsequiá-lo com a presença de três ministros da nação. Não sei se por falta de trabalho nos gabinetes ministeriais se pensando já nas bonitas imagens e frases sonantes que as televisões mostrariam em horário nobre, os três lá foram. A coisa até que nem começou mal. Cada um lá ia dizendo uma piada de circunstância e tudo se encaminhava para que, finalmente, os “comunistas” dessem uma manhã de descanso ao primeiro ministro mais à sua ministra da educação – deixamos propositadamente o ministro das finanças de fora porque a esse já ninguém o leva a sério – mas, quando os estudantes se aperceberam da presença de tal delegação na sua escola foi o bom e o bonito. Foi tamanha a contestação que a luzente comitiva teve de acabar a espectáculo de supetão e ser guiada por caminhos esconsos rumo a uma saída alternativa que os pusesse a salvo do coro de vaias que, com certeza, faria as delícias de alguns canais de televisão à hora do jantar.
Esta mania que, em especial o primeiro-ministro e a ministra da educação, têm de se raspar sub-repticiamente vai-se tornando um hábito pelo que episódios destes, de tão banalizados, começam a não prender a nossa atenção, mas ontem, quando à hora de jantar ouvi dizer que o gabinete do primeiro ministro tinha enviado para as redacções a informação que o Engenheiro Sócrates não tinha saído pela porta do cavalo como estava a ser noticiado, tive um sobressalto. De repente, lembrei-me do “professor Salazar […] em passinhos delicados de freira, ondulando os dedos transparentes para os vasos a cuidar que as flores o aplaudiam[1]. Será que o homem, distribuía aquele ridículo sorrisinho de plástico aos estudantes da António Arroio, pensando que o louvavam?


[1] in "O Manual dos Inquisidores", António Lobo Antunes

01 maio 2009

SAUDADES DE MAIO


Não há pachorra! Depois admiram-se quando as sondagens ameaçam com dezasseis por cento de tontos que ainda contam ir votar. Com a má fama de que goza a classe política, ainda somos obrigados a levar com gente sem qualquer criatividade a entrar-nos pelas portas adentro sempre que ligamos a televisão. Então admite-se que depois de levar umas pauladas, quando todos estávamos à espera de uma resposta proporcional por parte do ofendido, este apenas diga e repita: “. - Marinha Grande! Marinha Grande!”.
Não sei – e não tenho especial interesse em saber, diga-se – quem escolhe o pessoal para estas coisas mas, seja lá quem for, deveria preocupar-se um pouco mais em arranjar malta mais inventiva. Marinha Grande! Qualquer publicitário de meia tigela sabe que isso já não vende.

25 abril 2009

ABRIL


Nestes dias de raiva em que um primeiro-ministro, quase de uma assentada, processa nove jornalistas porque não gosta do que escrevem;
Nestes dias de cólera em que um mangas-de-alpaca suspende um funcionário porque viu, na anedota que contou, matéria susceptível de melindrar o chefe;
Nestes dias de fúria em que vemos a polícia entrar por uma escola adentro para fazer perguntas “indiscretas” sobre a próxima manifestação;
Nestes dias de ira em que se exonera um director porque não mandou retirar um cartaz onde um seu subordinado tinha escrito uma frase proferida por um ministro e, pasme-se, considerada ofensiva para o mesmo;
Nestes dias de chumbo em que sinto estarmos, ordeiramente, entrando num gigantesco panopticon, trinta e cinco anos depois de Abril, lembrei-me, sabe-se lá porquê, do Chico Buarque:

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

19 abril 2009

NÃO FOI NADA CONNOSCO

Quando, em meados de Novembro do ano passado, ficamos a saber que o ministro Teixeira dos Santos era, para o insuspeito Financial Times, o pior dos ministros das finanças da União Europeia, confesso que fiquei um pouco sentido com o periódico. Que diabo, estes arrogantes destes ingleses sempre a malhar nos mesmos. E, como não tendo ficado contentes com a boa-nova ainda tiveram a desfaçatez de contarem, com todos os pormenores – alguns bem sórdidos, diga-se –, os resultados parcelares do estudo. Assim ficamos a saber, ou melhor, assim todo o mundo ficou a saber, que o Doutor Santos se portou miseravelmente nos três critérios estudados: em dois deles foi o último e no terceiro o antepenúltimo.
Na altura, confesso, até tive um pouco de pena do homem mas ontem, quando ouvi a resposta que deu a um jornalista de um canal de televisão, rendi-me à evidência: pelo menos num dos critérios estudados o Financial Times tem toda a razão. Quando o jornalista lhe perguntou se se revia nas considerações que o Presidente da República fez a propósito de governar para os números e para as estatísticas o bom do homem, candidamente, respondeu que o senhor presidente da república não se estava a referir ao governo.

18 abril 2009

TARDE DEMAIS!


Agora é tarde senhor presidente. Devia ter falado quando todos lhe pedimos que falasse. Rogamo-lo uma e outra vez mas o senhor limitava-se a dizer, e repetir até à náusea, diga-se, que “este não é ainda o tempo do presidente se pronunciar” . Era sim, senhor presidente, aquele é que era o tempo! Pela certa não teríamos chegado aonde chegamos. Dizer agora, quando o caos está instalado, que não se pode governar para as estatísticas e outras patetices do mesmo jaez cria, na meia dúzia de tontos que ainda o ouve, dois sentimentos contraditórios. Metade dos tontos pensará: que pena não se ter lembrado de dizer isto antes e obrigar aqueles figurões a arrepiar caminho. Os restantes, irados, pensarão: melhor estivesse calado! Se isto chegou a este ponto ele tem nisso uma quota-parte importante da responsabilidade. É preciso não ter vergonha para vir agora dizer isto.
Pois é senhor presidente, o senhor foi conivente com a política que nos trouxe até aqui. Confiamos em si, levámo-lo para o palácio cor-de-rosa para que olhasse por nós, mas o senhor defraudou-nos. Deixou que uma equipa governativa, que, diga-se, tinha todas as condições para fazer um bom trabalho, trouxesse uma carga inimaginável de contestação a todos os quadrantes da sociedade portuguesa. Vou-lhe dar apenas dois exemplos de oportunidades perdidas pelo senhor:
Primeiro caso: quando após um ano de governação, e depois da equipa ministerial da educação ter feito o mais vil ataque a tudo o que de bom se ia produzindo nas escolas do país, a ministra vem dizer que, apenas num ano, os resultados escolares dos alunos tinham melhorado trinta por cento, o que disse o senhor a esse respeito? Nada! O senhor é professor, sabe que nenhum país do mundo consegue, no espaço de apenas um ano, melhorar em trinta por cento os resultados escolares dos seus alunos a menos que trapaceie as estatísticas. Devia, alto e bom som, ter ajudado a desmascarar esse embuste, mas, em vez disso, deixou-nos sozinhos a lutar pela verdade e, passado pouco tempo, veio publicamente tecer os mais rasgados elogios à equipa ministerial e ao trabalho que estavam desenvolvendo. Olhando hoje para o descalabro que se vive nas escolas do país sempre gostaria de saber se continua a comungar dessa peregrina opinião do bom trabalho;
Segundo caso: quando na assembleia da república com a habitual pompa o primeiro ministro dava conta dos primorosos resultados de um estudo da OCDE sobre a educação no país que se veio a saber ter sido feita com base em resultados de nove escolas – pasme-se, resultados de apenas nove escolas – e, ainda por cima escolhidas por quem encomendou o estudo que, afinal não foi feito pela OCDE mas sim por uma funcionária dessa organização que nas horas vagas faz uns trabalhos desse género, o que disse o senhor sobre esse caso que cobriu o país de vergonha? Nada!
Apenas dois casos dos inúmeros que foram envenenando a vida dos portugueses ao longo dos últimos quatro anos. O senhor tinha a obrigação de prever o desastre e repará-lo enquanto era tempo. Em vez disso, sabe-se lá porquê, deixou que se cometessem todos os atropelos que se foram cometendo ao longo destes quatro anos de modo que agora é já tarde demais e os tempos que aí vêm serão bem ásperos para muitos de nós.

08 março 2009

MULHERES

Sirvo-me, como muitas vezes o faço, do poeta, para dizer a todas "as minhas mulheres" o quanto as acho bonitas.


a mulher mais bonita do mundo

estás tão bonita hoje.
quando digo que nasceram flores novas na terra do jardim,
quero dizer que estás bonita.
entro na casa, entro no quarto, abro o armário, abro uma gaveta,
abro uma caixa onde está o teu fio de ouro.
entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro,
como se tocasse a pele do teu pescoço.
há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.
estás tão bonita hoje.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
estás dentro de algo que está dentro de todas as coisas,
a minha voz nomeia-te para descrever a beleza.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

04 janeiro 2009

OS LÍRIOS DO ERICO ESTÃO NA LISTA

Tenho para mim que todos aqueles que gostam de livros têm uma lista dos que, por circunstâncias várias, ainda não leram mas não perderam a esperança de vir, um dia, a fazê-lo. A minha é imensa – refiro-me à lista, entenda-se. Foram lá parar pelas mais variadas razões: porque os folheei e gostei do que vi; porque me foram aconselhados por quem pode – sim porque dar conselhos sobre livros não é para quem quer é para quem pode –; porque li sobre eles e fiquei convencido e até, pasme-se, porque “toda a gente lê” – hei-de, se para isso me não faltar a coragem, ler o Ulisses de James Joyce. Do Joyce como familiarmente diz o pessoal mais pretensioso como se o tivesse acompanhado nuns fins de tarde a esvaziar uns copos de Guinness no pub lá da rua. Desconfio bastante deste pessoal mais afectado mas, mesmo assim, não vou riscá-lo da lista. Veremos no que dá. Bom, dizia eu que a minha lista é imensa. Um dia, ainda que longínquo, todos aqueles títulos saltarão para a minha mesa-de-cabeceira e então, só então, poderei saber se valeu a pena a espera. Até lá, para me não amargurar a delonga, vou-me socorrendo da confidência de Miguel Torga. Com a provecta idade de 75 anos – confidenciou-o ao seu Diário nos princípios de 1983 –, Torga, experimentou, pela primeira vez, os prazeres das aventuras de Júlio Verne, o humorista da imagem, como lhe chamou. “Júlio Verne […] que não me povoou de aventuras a infância, obrigada a contentar-se com as histórias da senhora Maria Ambrósia, enriqueceu de franca alegria algumas horas da minha velhice”. Quando sou apanhado em falta, lembro-me do poeta.
"Olhai os lírios do campo" ainda não li. Está na minha lista. Já quase apagado pelo uso mas, estoicamente, resistindo. Está lá, se me não atraiçoa a memória, por três razões: a primeira remete-me para a minha infância e juventude. Tenho por adquirido que, por mais do que uma vez, nos livros de texto de Português li extractos de obras de Veríssimo. Li e gostei. A decisão de, futuramente, o incluir na lista, terá começado a fermentar por essa altura. A segunda razão é, à falta de melhor classificação, do foro estético: diz respeito ao título. Considero o título importantíssimo. Reconheço ter algumas dúvidas que um bom título torne boa uma má obra mas do que não duvido é que um fraco título pode assassinar uma boa obra. "Olhai os lírios do campo" é, sobre qualquer prisma que o observemos, um título notável. A terceira razão, esta mais prosaica, tem a ver com o nome do autor. Nunca me saiu da cabeça que o “mangas-de-alpaca”, na hora de assentar o nome da criança, comeu um u e, ali mesmo, determinou que a criança seria Erico até ao fim dos seus dias.


Este texto, publicado inicialmente em 12 de Dezembro p.p., foi premiado no sorumbático.