Capítulo II
NO TEMPO EM QUE NÃO HAVIA INTERNET NEM PLAYSTATION
A gaveta fechou-se com estrondo e eu fiquei completamente cega. Que saudades do marçano lá da loja, da delicadeza com que abria e fechava as gavetinhas minúsculas de plástico transparente dos mostruários, do cuidado com que nos manuseava, da sensibilidade e orgulho com que nos mostrava aos clientes e lhes falava de nós. Que saudades... Aqui no escuro, sozinha, consigo, por fim, compreender o que li há já muito tempo, li que “a saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora”. Lembro-me que foi num livrinho pequenino mas não me lembro do autor. Talvez nem o tenha conseguido ler, como acontecia muitas vezes, mas estas palavras tão poéticas, que agora me vêm direitinhas à memória, só podiam ter sido escritas por uma pessoa sensível. Naquela altura achei-as bonitas, por isso as recordo, mas não lhes dei uma especial importância, mas agora, aqui fechada, nesta solidão, consigo perceber o que a menina - acho que era uma menina que o dizia - sentiria ao dizê-lo.
Quando comecei a habituar-me à escuridão, que um fiozinho de luz, entrando pela frincha da gaveta, ia combatendo, comecei a perceber que, afinal, não estava sozinha. Antes de mim já outras três tinham tido a mesma sorte, atiradas para a gaveta ainda dentro da caixinha de plástico. Por que não teriam falado? Por que não me teriam dado as boas vindas quando me arremessaram para a gaveta e eu não via nada? “Olá! Não falamos antes porque, entre nós, decidimos que não o faríamos. Quem chegasse teria uns momentos de recolhimento, digamos assim, para se aperceber, talvez devesse dizer para se conformar, da sua nova vida e então, quando o breu desse lugar à penumbra, poderíamos, conversar.” Foi uma bela caneta, toda em madrepérola, quem assim falou. Parece que tinha ouvido os meus pensamentos. “Olá!” respondi.
Dali a pouco ouvimos passos e pouco depois a frincha apagou-se. Agora não passávamos de ténues silhuetas. O barulho da casa foi baixando a pouco e pouco até que se instalou o silêncio. “A parte do dia por que esperamos ansiosamente. Embora quase não se consiga ver podemos falar à vontade e rir às gargalhadas das histórias que contamos. Conta-nos a história de que falaste ontem, caneta primeira” disse a madrepérola. “Caneta primeira?” - admirei-me. “Sim. Decidimos que ficaríamos conhecidas pela ordem em que cá chegamos. Eu, por exemplo sou a caneta segunda, e tu serás a caneta quinta!”. “Caneta quinta? Mas só cá estamos quatro! Porque terei de ser a quinta?” - contestei. “Serás a caneta quinta porque foste a quinta a cá chegar. Talvez não tenhas reparado mas ali ao fundo está a que chegou antes de ti, a caneta quarta”. Então é que reparei. Ao fundo da gaveta lá estava. Embora com dificuldade conseguia-se adivinhar uma caixa ainda meio coberta pelo papel de fantasia Estava ali outra de nós. Talvez a mais taciturna de todas, por isso não tinha ainda dado por ela. “Conta então a história de ontem, segunda” - tornou a madrepérola.
Passou-se já há bastante tempo – começou – por isso pode ser que alguns pormenores não tenham sido rigorosamente como vou contar mas não alterarão, com toda a certeza, a história. Um dia, vi chegar dois clientes. Não tenho grande jeito para adivinhar idades mas não errarei muito se disser que um tinha já passado, há muito, o meio século, o outro era bem mais jovem, talvez filho, ou mesmo neto. Olhavam para nós e iam fazendo comentários acerca do que iam vendo. O mais velho era o que mais falava. Estava constantemente a mostrar ao mais novo pormenores em que, confesso, nunca tinha reparado. De repente, acerca-se de uma bela caneta com aplicações de ouro no aparo, faz um ar pensativo, e começa a recordar:
Caneta de aparo... aparos … deixa-me sonhar um bocadinho. Aparos, trazem-me à memória a pena, uma chapinha bicuda com rabinho de “pau” que, a espaços que se contavam pelo número de letras escritas num azul retinto, se mergulhava no tinteiro branco de cerâmica embutido no meio do tampo da carteira com assento de dois lugares, onde, putos ainda, nos sentávamos. As calças remendadas, calçados com chancas ou com socos, com “solas” em madeira de freixo e cobertura de duro couro de boi, mas não tão duro que os pés o não conseguissem moldar, ainda que com alguma ajuda do sebo com que o esfregávamos para o impermeabilizar e não deixar entrar a água da chuva ou das poças do caminho que teimávamos em não contornar. Na carteira se aperfeiçoava a caligrafia e se treinava a aritmética. Na carteira nos espantávamos com a valentia dos antepassados e a imensidão do império. Na carteira se levava “bolos” com a palmatória de furinhos e se pendurava, a escorrer, o saco de serapilheira, que depois de transportar cinquenta quilos de batatas de semente Arran-Banner ou Arran-Consul ou mesmo de Portalegre, menos cosmopolita, é certo, mas batata da nossa, servia para nos abrigar da chuva. Sim, porque o guarda-chuva, de grosso pano preto com cacheira de madeira e varetas maciças que davam ótimos instrumentos para jogar ao espeto, não era coisa de crianças, ou melhor, não era coisa para todas as crianças. A chapinha bicuda ou aparo, parecido com aquele que nos causou pavor quando éramos pequenos e nos riscaram o braço, logo abaixo do ombro, que nos deixou para sempre uma cicatriz como prova da nossa vacina contra o sarampo – sarampo, sarampêlo, sete vezes vem ao pêlo. Foi também a primeira forma de tatuar que conheci quando espetei no joelho, um, carregadinho de tinta.
À memória vem-me ainda a minha primeira professora, que mandou o meu pai comprar a minha primeira pena e com ela me ensinou caligrafia no caderno de duas linhas. A Dona Fernanda era uma simpática velhinha. Seca de carnes, vestia sempre de preto, um comprido casaco com uma textura em bordado de alto-relevo e tom brilhante, que apenas deixava espreitar uns sapatinhos de salto baixinho como ela, parecidos com os da Minie ou da Olívia Palito, figuras fantásticas que nos faziam sonhar quando éramos pequenos. Líamos e relíamos as histórias aos quadradinhos, nas revistas que os filhos do senhor Coutinho, aquele que construiu o prédio onde antes era o Mercado Municipal e que agora querem deitar abaixo, nos davam para passar o tempo.
Não havia internet nem playstation e televisão só no café da Tia Lina. As contas e as redacções eram feitas numa pedra fininha de xisto cinzento, a lousa, que se partia quando caía ao chão e só ficava pretinha quando as oliveiras tinham azeitonas maduras. Esfregávamos e besuntávamos a nossa lousa, que ficava com o cheiro da carroça do azeiteiro da ponte quando levava a "venda" às casas da aldeia. Mas o que nos faltava em tecnologia sobrava-nos em engenho. Roubavam-se lá em casa os preciosos rabos de bacalhau que atados a um fio barbante eram o isco perfeito para apanhar dúzias de caranguejos no Poço Pescadouro. Finda a pescaria preparava-se a confeção: sobre um molho de caruma colocavam-se os pobres crustáceos que, parecendo adivinhar a sua sorte, faziam tudo por fugir antes que o lume os assasse. Aqueles que o conseguiam não poderiam vangloriar-se da façanha por muito tempo pois logo uma mão providencial aparecia para o devolver ao seu lugar. Quando não íamos à pesca inventávamos sofisticadas ratoeiras para apanhar pardais ou então atacávamos os pomares. Com um misto de fome e de vontade de aventura, escalávamos os altos muros da quinta do Ganhão para roubar as apetitosas maçãs que, de outro modo, dificilmente provaríamos. Os mais corajosos de entre nós metiam-se noutras aventuras bem mais temerárias. Noite cerrada, amoitavam-se na leira do Vieira munidos de pesados torrões esperando pelo cabo da Guarda Nacional Republicana que haveria de passar por ali montado na sua pachorrenta Famel Zundapp a caminho de casa. Durante o dia, quando passava na estrada, com a farda cinzenta e aquele redondo capacete de chapa e a grande espingarda Mauser, com uma assustadora baioneta que brilhava ao Sol, pousada no quadro da bicicleta, aterrorizava quem com ele se cruzava. Agora que não tinha a ajuda da farda iria pagá-las. O barulho da fumarenta Famel quando descia os Carregais era o nosso sinal. Três minutos de tensão, medo e coração a bater, até se ver a luzinha a sair da curva do Vieira. Então, era só esperar uns segundos até que se encontrasse no nosso raio de ação e toca a despejar as “munições”. Depois era fugir pela noite dentro, atravessando o rio da Fonte Grossa, pelos carreiros que se conheciam de cor e esperar em silêncio, quase sem respirar, no meio do centeio ou do azevém, não fosse o homenzinho ter coragem para nos perseguir no escuro.
Lembro-me agora que a Dona Fernanda usava sempre um barrete à Cossaco, tal e qual como o daqueles homens da Tundra que caçam lobos, lebres e raposas com ajuda de uma águia. Ela não caçava lebres nem raposas e muito menos lobos, mas fazia muito mais do que isso: mantinha na mesma sala uma “alcateia” em silêncio, das nove às três, com quarenta “lobos e raposas” dos sete aos catorze, e, da primeira à quarta classe, ensinando a todos as contas, a leitura, a história, a geografia e a caligrafia com a pena de aparo. Chegava todos os dias às oito e meia na camioneta de carreira do Sordo. Saía na paragem do Lima e às três e meia partia na mesma camioneta, rumo a casa, ali para os lados da Bandeira.
Aparo, pena, Dona Fernanda… quantas recordações que pensava estarem completamente esquecidas…
É do que me lembro. O contador recordava com tal prazer a história que, de quando em vez, eu via muito bem, os seus olhos brilhavam. O mais novo, esse, não desviava os olhos do outro. Quase nem pestanejava. Parece que tinha medo de perder alguma peripécia da história.
Bom, já é tarde - disse a madrepérola -, ficamos por aqui. Amanhã continuamos...
Depois do primeiro capítulo publicado há cerca de um ano, este foi, digamos assim, escrito a duas mãos. Só conseguiu ver a luz do dia com a prestimosa ajuda do meu irmão Chico. Vamos lá pensar no próximo. Quem se chega à frente?
4 comentários:
Carlos, deliciei-me a ler o Conto II. Com esta leitura regressei, quase, à minha primária tão igual à tua. Assim não deve haver seguidores, deve continuar.
Feliz Ano 2013
Zé Nora
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