08 julho 2013

OS DEUSES E OS DEMÓNIOS, O CÉU E A TERRA


Se quiseres partir amanhã
Eu paro o mundo
Pedro Barroso

O escrúpulo de físico que, estou em crer, nunca permitiria a Camarneiro estas liberdades de poeta de parar o mundo, não o impediu, todavia, de começar já a contraí-lo. Não a truncá-lo porque isso resultaria num mundo desequilibrado e esse não é o que nos é mostrado em “Debaixo de Algum Céu” mas, tão só, um mundo encolhido mas perfeito porque obedecendo às regras da proporcionalidade. Lá encontramos todos os ingredientes que tornam perfeito um mundo, a começar por aqueles homens rômbicos [e] mal feitos para encaixar porque nenhum mundo pode ser perfeito se não tiver lugar para homens imperfeitos. Lá encontramos as dúvidas e as inquietações do padre Daniel, tão novo e [com] um mistério tão grande para explicar. Dividido entre um amor impossível e a obrigação de apascentar o rebanho, este pastor de uma paróquia pequena mas devota, como são quase todas as terras onde os homens morrem só de ganhar a vida, jamais conseguirá ultrapassar a dúvida que o assalta uma e outra vez: pode Deus estar certo e mesmo assim não existir? Ele, que humildemente pedirá ao proscrito que um dia lhe perguntou se Deus é como dormir abrigado do vento, que o ensine a pescar, há-de, num acesso de lucidez, confessar-lhe que tem as mãos cansadas de cruzes, fartas de benzer e lançar terra. Lá encontramos os demónios que nos apoquentam: os que se escondem no breu deixado em cada rotação do farol por aquela luz que os homens do mar sabem ler e onde vêem deuses favoráveis, mães e mulheres e o calor que lhes falta, e os que se acoitam na cabeça do pequeno Frederico e lhe ditam as histórias que ele conta com desenhos: cavalos e homens com espadas, céus cor de laranja e mares encapelados. Lá se encontram aqueles que se isolam, que fogem sempre, até que um dia, olhando o mundo, vêem o que nunca tinham intuído e, tal como o jovem David, juram promessas de conversão: Um dia há-de deitar-se cedo e acordar fresco […] Passear junto ao mar, cumprimentar os pescadores e comer pão quente na padaria. Lá encontramos tudo isso e encontramos também a personagem magnífica de Marco Moço, todo cheio de filosofias, construindo um instrumento de imitar a memória enquanto vai imaginando um mundo onde os deuses se pudessem dispensar e todos construíssem máquinas loucas na cave: um motor para retardar o tempo, um projector de sonhos, um realejo que cante poemas sempre novos, um telescópio para olhar o passado, uma máquina de fazer marés. Moço, que podia bem ser um deus se o mundo encolhesse até ao volume do prédio onde vive, com os materiais que o mar cada dia restitui à praia, madeira e ferro e também latas, cordas, plásticos, ramos secos, sapatos, porque tudo se pode encontrar por onde os homens passam, sem pressas, porque as memórias fazem-se de tempo, vai acertando a sua máquina prodigiosa de brisas e tempestades. E encontramos as mulheres, a viúva do Calvinista que, já idosa, Marco Moço e a máquina prodigiosa resgatarão a uma vida de recordações que a trazem manietada e também Manuela dividida entre o prazer do chocolate e o dever fastidioso da casa e do trabalho, olhando, um dia, o espelho na esperança que este não lhe exagere a idade e Constança que sabia de ciência certa que a mama, as fraldas, as roupinhas de criança e as reuniões de trabalho do marido lhe iriam arruinar o casamento porque os homens são também crianças, passam a vida à procura das mulheres sem saberem que o que lhes falta está metido dentro delas. Soubessem eles quantas mulheres dormem dentro de cada uma delas… mas não sabem. E encontramos ainda outras mulheres, Beatriz, a desgraçada Beatriz que morrerá sozinha no meio de toda a gente, e todas as outras, todas as mulheres do mundo que não diferem muito da São, a peixeira que um dia ofereceu uma saca de peixe ao padre Daniel: se gostar dos bichos reze pela minha alminha. O pastor aceita os peixes e talvez pense nesta sabedoria primordial das mulheres que deixa aos homens a manutenção do sagrado, os ritos e as palavras com que se fala a Deus, mas é a voz delas que fala na sua, são seus os rogos e graças, só elas Lhe sabem falar a modo. Parafraseando um tal Mau-Tempo, este livro fala de todos estes e de muitos outros de quem não sabemos os nomes mas conhecemos as vidas. E durante oito dias, debaixo de um pedaço de céu, os sonhos e os pesadelos, a integridade e a vilania, a alegria e a tristeza, a tolerância e o rigor, o jugo e a libertação, o sagrado e o profano, os deuses e os demónios, o céu e a terra.

16 junho 2013

A IMPORTÂNCIA DE SABER REGRESSAR

Costuma dizer-se que nunca devemos regressar a um lugar onde já fomos felizes. Está claro que este é um dito como outro qualquer. Um político, se lhe fosse pedido um comentário sobre esta expressão, desbobinaria a narrativa - engraçado, desde há uns meses a esta parte, sempre que utilizo esta palavra "narrativa" vem-me à memória um certo figurão que um dia desembarcou por cá vindo de Paris (da Sciences Po de Paris, assim é que é) e desatou a disparar narrativa a torto e a direito. E de tal modo o fez que agora, sempre que penso utilizar o termo, dou por mim a procurar sinónimos. As palavras, sei-o agora, não são seres inanimados: desengane-se quem assim pensa. As palavras têm vida própria e, tal como qualquer mortal, são prejudicadas quando as companhias com que privam são pouco recomendáveis. A narrativa é um caso paradigmático. Há-de passar ainda muito tempo até que seja reabilitada – desbobinaria a narrativa, dizia, que utilizaria se a pergunta fosse sobre as últimas sondagens: enfim, essa expressão vale o que vale - diria.
Voltando, então, ao lugar onde já fomos felizes: parece-me que, as mais das vezes, dá-se a esta frase uma interpretação linear. Por ignorância ou por má fé, alguns querem ver aqui a proibição do regresso ao lugar da felicidade: nada disso. A frase pretende, tão só, avisar-nos que nunca devemos esperar encontrar esse lugar onde já fomos felizes porque esse lugar já não existe. Desde logo porque quando lá regressarmos já seremos outros. A frase, não pretendendo proibir-nos o regresso, longe disso, pretende, isso sim, ajudar-nos a evitar o desconsolo que um segundo olhar pode trazer. Por isso, quando oiço pessoas a dizer que a frase é uma parvoíce, vejo que não entenderam nada.
Regressemos, então, e agora para ficar, ao que nos trouxe aqui: "O retrato da mãe de Hitler", o último romance de Domingos Amaral. Há seis anos o autor deu à estampa "Enquanto Salazar dormia" que, não sendo uma obra que tivesse impressionado a Academia Sueca, era, mesmo assim, um livro muito agradável de ler. Talvez encorajado pelo êxito desse romance o autor decidiu agora voltar à Lisboa dos espiões da 2.ª guerra que tanto o tinham feito feliz há seis anos. O romance é, ou pelo menos pretende ser, a continuação do anterior, mas, terminada a sua leitura, fica-se com a sensação que o autor tinha ficado com bastante material não utilizado no romance anterior e, em vez de o atirar para o local apropriado, compilou-o e fez um livro. Além da forma original mas pouco verosímil da narrativa – agora não consegui fugir-lhe – o livro não traz nada de novo: já tudo tinha sido dito no anterior. Tivesse Domingos Amaral consultado Luisinha, a filha rebelde do general situacionista, apaixonada pelo espião, e esta, da mesma forma que tinha declarado, ao olhar para a sua fotografia num passaporte falso que lhe permitiria sair do país quando a PVDE estava quase a apanhá-la, «Pareço a Joana Fontaine em Rebecca», diria que o remake era de evitar porque, além de criar a sensação de requentado, era sempre pior que o original. E diria mais: diria que podia sempre regressar a quarenta e dois mas nunca esperando encontrar os locais, as pessoas e as ideias inalterados, porque o tempo era já outro.
Mas não consultou e por isso, o regresso, foi, pelo menos para mim, uma desilusão.

11 março 2013

"... ESTA DESGRAÇADA CIDADE DE LISBOA"


Um dia, teria já ultrapassado os setenta anos de idade, Torga dispôs-se a ler as aventuras de Júlio Verne. Faz-nos esta confidência em princípios de 1983 num dos seus diários. Todavia, apressou-se a dizer, sobre o humorista da imagem, como gostava de apelidar o grande escritor francês, que se este não lhe tinha povoado de aventuras a infância, obrigada a contentar-se com as histórias da senhora Maria Ambrósia, tinha enriquecido de franca alegria algumas horas da sua velhice. Vem isto a propósito de Giacomo Casanova, o aventureiro - perdoe-me Dr. Mega Ferreira o ligeiro epíteto que prodigalizo ao Veneziano -, que um dia desembarcou em Lisboa com insondáveis incumbências e por cá andou durante uma meia dúzia de semanas, afortunadamente livres nas suas memórias, até que o secretário Sebastião de Carvalho, irritado pela descoberta da sua rocambolesca fuga das prisões do Doge, lhe deu vinte e quatro horas para deixar o reino. Casanova, sei-o agora, foi muito mais do que aquele marialva, imagem que a história, ciosamente, dele guardou. Eu, que como o poeta, preenchi a infância e a juventude com outros negócios que talvez me tenham estreitado a visão, prometo, a partir de agora, olhar, também, para fora da alcova do Veneziano.
Num certo olhar o livro “Cartas de Casanova, Lisboa 1757” parece ser um cru relato da situação vivida no país durante um dos mais negros momentos da sua história: o terramoto de 1755. Casanova, que se evadiu da prisão na madrugada de 1 de novembro de 1756, precisamente um ano após o grande sismo, para se refugiar em Munique, quando desembarcou em Lisboa, passados que eram cerca de dois anos após o desastre, ficou horrorizado com a visão da tragédia que tinha atingido «esta desgraçada cidade de Lisboa». Pouco depois da chegada, em carta enviada ao irmão, confidenciaria que «mal podia imaginar, naquela noite de novembro de 1755 em que as paredes tremeram na prisão de Veneza e […] por momentos desejara que o abalo acabasse por derrubar as barreiras que [o] separavam da […] tão desejada liberdade, a extensão horrorosa da catástrofe…». Durante as seis semanas que por cá permaneceu, Casanova, vai contando, nas seis cartas que enviou a cinco destinatários diferentes, as suas impressões. Ora sobre a tragédia: «o que se apresentava aos meus olhos era, em muitos aspectos, muito mais horroroso do que as minhas piores conjecturas permitiam imaginar», ora sobre a extrema religiosidade que coava as luzes que iam iluminando essa Europa, atribuindo o bem e o mal aos insondáveis desígnios do senhor e deixando que «as coisas tomem o seu curso normal segundo a vontade divina que é rápida a castigar e lenta a conceder o perdão». Impressionou-se com as desigualdades chocantes sempre que testemunhava as autênticas paradas de elegância, «que bem podia sugerir estarmos nas imediações de Fontainebleau, não se desse o caso de a ostentação proporcionada pelo quadro […] ser tingido pelas legiões de mendigos e estropiados […] à procura de uma esmola que lhes salvasse o dia». Pelo meio vai perorando sobre a qualidade dos nobres portugueses «de pouco mundo e nenhumas luzes» que acha incultos, rudes, supersticiosos e desconfiados, vivendo para as montarias, o jogo e as touradas e ainda arranjou tempo para verificar a boa saúde das filhas mais novas do banqueiro Teixeira, separadas pelo sismo, testemunhar a exclusiva encenação da corte na grade do convento de S. Dinis em Odivelas onde «metade dos marqueses condes e barões» cortejam «as filhas segundas de todas as casas nobres, as suas primas, as suas irmãs, as suas amigas» e, como director da lotaria de Paris, chegar à fala com o «sedentário ministro» Sebastião de Carvalho.
Casanova, viajante incansável, foi um apetrechado escritor: “Histoire de ma vie”, uma obra de fôlego em doze volumes, aí está para o provar. Privou com as mais reputadas figuras europeias do século XVIII. Frequentou os círculos eruditos da época e deu largas à sua paixão pelo jogo. Foi, ao que parece, um violinista mais que aceitável, note-se que foi nessa qualidade que logrou «vencer a barreira até então intransponível do poderoso mosteiro» de Odivelas onde se inteirou da sorte das filhas mais velhas do banqueiro Teixeira. Foi isto tudo mas é da sua faceta de sedutor que a história dele guardou as mais abundantes evidências. Não se pense, no entanto, que neste particular a história lhe foi lisonjeira: não senhor; ele fez por merecê-lo. Pela sua pena, ficamos a conhecer o desenlace de algumas das suas empresas que, durante a breve estadia entre nós, levou a cabo. Nas cartas que escreve vai entremeando o relato formal do andamento das incumbências que cá o trouxeram com novas mais mundanas. Na primeira carta conta à Condessa Coronini que não conseguiu ficar indiferente à presença de uma jovem de longos cabelos louros apanhados à francesa e olhos castanhos como avelãs brilhando por detrás de longas pestanas. Na segunda, descreve ao irmão, a viagem de Marselha até Lisboa por mar e a instalação na hospedaria. Contava-lhe que a criada, que não teria mais de quinze anos e era de compleição agradável, apressou-se a trazer uma selha para o banho e duas ou três vasilhas com água quente. Depois, com muito cuidado, tirou-lhe o barrete que usara na viagem, e que estava praticamente inutilizado, e ajudou-o a despir-se. «Fosse o à-vontade da rapariga, ou porque a água quente viesse restaurar os bons humores na minha circulação, o meu corpo deu sinais exuberantes de ter regressado à vida», disse. Na terceira carta, endereçada a uma misteriosa freira que se pensa ter sido Marina Maria Morosini, começa por relembrar «esse ano memorável em que nos tornámos amigos e amantes» para terminar contando-lhe as aventuras na quinta de Madalena Fróis, prima de Correia Garção - que Casanova, nunca escondendo a aversão que o poeta lhe causava, tratava por Garçon -, ensinando à sua filha, Clara, «uma adorável vestal de catorze anos […] que os olhos não podiam cansar-se de admirar, […] tudo o que possa despertar nela o gosto pelos prazeres da vida». Para terminar, na sexta carta, conta ao senhor de Bernis, ministro de Luís XV, a partida apressada deste reino de Portugal, num reluzente coche de oito molas, na companhia da bela sevilhana Inês de Cantillana, afastando-se, avisadamente, do longo braço do ministro Carvalho, «o homem mais poderoso de Portugal». E só não transmitiu novas mais da sua condição na quinta carta porque o seu génio impulsivo e destemperado o traiu e na quarta, absorvido que estava a contar a Matteo Bragadin, senador da República de Veneza, o minucioso trabalho de aproximação à corte do rei José e do seu todo-poderoso ministro Sebastião de Carvalho.