29 agosto 2009

AS ADMIRÁVEIS NOVAS LEIS

De quando em vez faço a minha visitinha ao shopping. Não por livre e espontânea vontade, diga-se em abono da verdade, mas cumprindo o meu dever de consorte fiel e pai extremoso. Lá chegados, enquanto as mulheres da família calcorreiam as lojas de vestimentas e outras bugigangas à procura não sei bem de quê – será que elas sabem? Tenho-me questionado sobre isso mas ainda não ganhei coragem para lhes perguntar: posso não gostar da resposta –, os homens recolhem-se a outros santuários. Normalmente escolho as livrarias. A Fnac do Norte Shopping é a minha preferida. Aquele recanto com o banco corrido, junto dos livros de bolso, não sendo embora o cúmulo do conforto, é o local ideal para se passar umas horas, calmamente, embrenhado na leitura.
Na semana passada lá fui. Dei uma vista de olhos pelas novidades, apontei algumas obras para acrescentar à lista e, a certa altura, deparei-me com um livro que me prendeu a atenção: “A Ministra” de Miguel Real. Peguei nele e fui sentar-me no banquinho. O tempo das compras das mulheres deu-me para ler quase metade da obra. É um livro pequeno mas duro. Pelas suas páginas perpassa o ódio, a malvadez, a intolerância e a fealdade. Fala de uma mulher seca, que nunca conheceu o amor, de passado trágico e futuro marcado pelo desejo de auto-afirmação; uma mulher de mentalidade despótica, adversa à espiritualidade dos valores, crente de que a única dimensão do bem reside na sua utilidade social; uma mulher cuja especialização académica consiste na manipulação de estatísticas, moldando a realidade à medida dos seus interesses; uma mulher que usa o trabalho, não como forma de realização, mas como modo de exaltação do poder próprio, criando, não o respeito, mas o medo em seu redor; uma mulher ensimesmada, arrogante, feia e triste, que ama a solidão e despreza os homens; uma mulher autoritária e severa consigo própria, imune ao princípio da tolerância; uma mulher que ambiciona ser Ministra.
Quando as mulheres me chamaram peguei no livro e restitui-o ao escaparate. Talvez um dia passe por lá e ganhe coragem para ler o resto.
No regresso, enquanto pensava naquilo que tinha lido, veio-me à memória um episódio que em tempos alguém me contou: Ana K. – assim mesmo, chamar-lhe-ei Ana K. por tudo o que de Kafkiano tem a história – é uma jovem professora. Um dia, depois de deixar o filhinho de tenra idade no infantário, meteu-se no carro e rumou à escola. Enquanto se afastava pensava na criança e não conseguia suster as lágrimas que teimosamente lhe escorriam pela face. Quando chegou à escola pode, finalmente, desabafar com uma amiga. O filho estava com febre. Ela sabia que deveria ficar com ele em casa. Sabia que a criança iria sofrer se ficasse todo o dia na escola. Sabia que nas condições em que se encontrava necessitava dos cuidados da mãe. Mesmo assim, levou-o. Quando a amiga lhe perguntou porque é que tinha feito aquilo, Ana K. respondeu: Tenho que pensar na minha avaliação. Sabes que adoro a minha profissão, dou sempre o meu melhor. Na última avaliação fui chamada ao Director que me disse precisamente isso, que tinha feito um óptimo trabalho com resultados excepcionais, sempre atenta às dificuldades dos alunos, pensando em estratégias para as debelar, infelizmente, tinha uma má notícia para me dar: não iria obter uma classificação que me permitia singrar na carreira. Fiquei atónita. Então depois de tudo o que acabou de me dizer? É verdade – disse ele –, fez tudo isso mas faltou um dia. Mas foi para ficar com o meu filho que estava doente – respondi-lhe. Nós sabemos de tudo isso, infelizmente há duas professoras com a mesma classificação mas a quota comporta apenas uma de modo que a única diferença entre os dois desempenhos é esta falta que, embora saibamos estar justificada, é uma falta. Saí dali revoltada com tamanha injustiça mas, a vida continuou. Hoje o meu filho precisava de mim para ficar com ele em casa mas não posso arriscar-me a novo percalço na avaliação de modo que estou aqui com um enorme peso na consciência por saber que vai passar um dia penoso no infantário.
Depois de ouvir aquela história imaginei uma equipa de legisladores a criarem uma lei que, de tão cruel, não pode ter sido feita a pensar em pessoas: irrepreensivelmente alinhados numa sala espartana, sem qualquer adorno que lhe desse um pouco de calor, uma equipa de cyborgs redigem, com mecânica eficiência, uma lei que irá reger a avaliação da professora K. e de todos os outros milhares de professores anónimos. O criador dos cyborgs, na sua programação, não lhes soprou qualquer porção de tolerância e assim, nas leis que eles criam, não se vislumbrava qualquer indício de humanidade.
Talvez passe pela Fnac para ler o resto d’A Ministra: nunca se sabe quando não encontro, na parte que ainda não li, a resposta à pergunta que me atormenta.

09 agosto 2009

NÃO É POR SENILIDADE NÃO!

O meu empirismo já há muito aí me tinha levado. Sim, a razão não poderia ser outra, mas, acobardado pela reacção de hilaridade que, pela certa, despertaria nas pessoas se o revelasse, tomei a decisão de guardar a descoberta só para mim. Mas agora que mais alguém chegou à mesma conclusão e o plasmou, em letra de forma, num livro de grande tiragem, posso, finalmente, cantar aos quatro ventos que “ […] se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até ao fim da vida”.(1) Tomem lá! Sempre que, pela enésima vez, repetir uma história, não voltem a chamar-me gagá, porque na realidade a história não é a mesma, a vossa fraca capacidade de discernimento é que não conseguiu captar as leves nuances.

(1) in leite derramado, Chico Buarque