31 março 2007

A ENERGIA DE UM PEIDO

A comunidade científica, aquilo que comummente designamos por comunidade científica, é um grupo díspar de pessoas, movidas por interesses diversos – uma parte, porventura, uma grande parte deles, inconfessáveis. Lá se cultiva a inveja, a maledicência e a velhacaria – Bill Bryson, na sua deliciosa Breve História de Quase Tudo, relata-nos histórias incríveis de desrespeito pelos pares –, e, de vez em quando, descobrem!
Quanto a descobertas há-as de três tipos: aquelas que resolvem um problema e fazem avançar o mundo; aquelas que ninguém, por qualquer razão, sabe para que servem e, eventualmente, só a prazo, farão avançar o mundo e o terceiro tipo, aquelas que toda a gente sabe que não servem para nada e nunca farão avançar o mundo.
Os jornais, as revistas e a nossa caixa de correio electrónico estão enxameados de exemplos do terceiro tipo. De vez em quando alguém tem a feliz ideia de mostrar em que se gasta o dinheiro do orçamento de estado e, então, todos ficamos mais documentados: se se peidar, ininterruptamente, durante 6 anos e 9 meses, produzirá gás suficiente para criar a energia de uma bomba atómica
Vem isto a propósito de um artigo que, há dias, li. Um investigador da Universidade de Lisboa, num estudo sobre a indisciplina, propôs aos seus alunos a seguinte tarefa: saber, numa determinada escola dos arredores da capital, quantas vezes os professores fizeram participações dos seus alunos. Recolhida e tratada a informação , comparou os resultados com os que tinha obtido em idêntico estudo nos anos oitenta e concluiu que o número de participações feitas, então, durante cerca de meia década, era, sensivelmente, o mesmo que na actualidade se faz num trimestre. Depois de várias considerações e de dizer que hoje tem dificuldade em resumir as causas do mau comportamento, tantas elas são, João Amado, assim se chama o investigador, remata de forma lapidar: “Ultimamente, os professores têm sido vítimas da desvalorização da sua própria condição e do seu estatuto pelo poder político, o que se vai traduzir na representação que a sociedade faz dos professores. E isto tem reflexos na sala de aula”.
Sem querer menosprezar o trabalho do investigador, sou forçado a acrescentar um quarto tipo de descobertas: as não descobertas, aquilo que toda a gente já sabe e por isso não se devia gastar tempo nem dinheiro a investigar. Todos sabemos – parece que, apenas com a excepção da própria e dois senhores que aparecem sempre atrás dela fazendo esgares de desvelo –, que a Senhora Ministra da Educação, nestes dois últimos anos, fez, ou patrocinou, estragos na imagem do professor que levarão muitos anos a corrigir. E isto paga-se caro. E isto pagar-se-á caro.

26 março 2007

TRÉGUAS! ESTÁ A JOGAR O BENFICA

O meu amigo Zé Joaquim é Sportinguista – será um dos seus poucos defeitos, diga-se. Mas também, quem é perfeito? -, no entanto, tal vocação, não o impede de ver no Benfica o melhor clube do mundo. Atento como ele é, descobriu na Visão mais uma prova da grandeza encarnada. De uma entrevista que António Lobo Antunes concedeu à revista, o Zé respigou o seguinte:

Visão: Ainda sonha com a guerra?
Lobo Antunes: […] Apesar de tudo, penso que guardávamos uma parte sã que nos permitia continuar a funcionar. Os que não conseguiam são aqueles que, agora, aparecem nas consultas. Ao mesmo tempo havia coisas extraordinárias. Quando o Benfica jogava, púnhamos os altifalantes virados para a mata e, assim, não havia ataques.
Visão: Parava a guerra?
Lobo Antunes: Parava a guerra. Até o MPLA era do Benfica. Era uma sensação ainda mais estranha porque não faz sentido estarmos zangados com pessoas que são do mesmo clube que nós. O Benfica foi, de facto, o melhor protector da guerra. E nada disto acontecia com os jogos do Porto e do Sporting, coisa que aborrecia o capitão e alguns alferes mais bem nascidos. Eu até percebo que se dispare contra um sócio do Porto, mas agora contra um do Benfica?
Visão: Não vou pôr isso na entrevista.
Lobo Antunes: Pode pôr. Pode pôr. Faz algum sentido dar um tiro num sócio do Benfica?

Pois é, tréguas na guerra só por alturas do Natal e nos jogos do Benfica.
Roam-se de inveja!

25 de MARÇO

O aniversário foi na realidade ontem, mas, para não ofuscar o cinquentenário do tratado de Roma, decidi comemorá-lo apenas hoje.
Fiz alguns arranjos em casa – quase imperceptíveis, diga-se – deixei cair um pouco da minha máscara, ou por outra, arranjei outra, agora mais transparente, deixando perceber o que se encontra por trás. Está claro que não fiz grandes remodelações, isso é só para quem pode – lembro-me por exemplo do Tozé que ainda há pouco tempo fez uma reforma geral, ou do Pedro que fez o mesmo, ou do António, um eterno insatisfeito, que deve ter contratado um decorador tantos são os melhoramentos que faz – e eu, que não me posso meter nessas cavalarias, servi-me, apenas do poeta para construir a minha diáfana máscara: […] Sabe, no fundo eu sou um sentimental […] Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora...
Agora levante a sua taça! Eu cá estarei para acompanhar.

25 março 2007

EUROPA, 50 ANOS DE SONHO

“Por todo o lado, encontrei magníficos sonhadores, homens e mulheres que porfiadamente acreditam nos seus sonhos. Mantêm-nos, cultivam-nos, partilham-nos, multiplicam-nos. Eu, humildemente, à minha maneira, também fiz o mesmo.”

Luís Sepúlveda, O poder dos sonhos


Para todos aqueles que em 1957 sonharam uma Europa de paz e de tolerância e para todos os que desde aí têm dado o melhor de si mesmo para que se cumpra o sonho, o meu respeito, a minha admiração, o meu agradecimento. Eu, humildemente, à minha maneira, continuo a sonhar.

21 março 2007

O MUNDO CONTINUA VÃO


É verdade, este mundo continua vão. E para quem pensasse que as misérias tinham apenas um século, desengane-se, elas sobrevieram no preciso momento que o primeiro homem cá pôs o pé, e, ou muito me engano, ou apenas cessarão quando o último fechar a porta. Uma prova do que digo encontrei-a no “Rosa do Mundo”, num poema indiano do séc. VII. Catorze séculos após sou forçado a concordar inteiramente com o bardo: parece-me que já nem a oração resulta. Assim sendo, o que resta a um homem?

18 março 2007

PAI, SEMPRE

"Cortei o cabelo a meu pai e fiz-lhe a barba. Foi sempre bonito o velhote, na sua esbelta e direita figura, na sua pele branca e fina de nórdico, nos seus olhos azuis, no seu loiro bigode de rapaz. Mas nunca teve coragem, nem tempo, para cuidar destes dons, embora goste que lhos gabem e cultivem. E de vez em quando é toda a família à volta do manjerico. Um aperta-lhe os botões da camisa, outro compõe-lhe o chapéu, outro tira-lhe a terra das orelhas. A mim tocam-me sempre a barba e o cabelo. E eu rapo o melhor que posso aqueles pêlos, com a solenidade que ele rapa as ervas de uma leira para lhe plantar um alfobre."

Miguel Torga, Diário III



14 março 2007

A FÓRMULA DO DESPERDÍCIO

A haver uma grande expansão inicial, os cientistas perceberam que teria de haver uma radiação cósmica de fundo, uma espécie de eco dessa erupção primordial do Universo. […] Mas onde diabo estava o eco? […] Por mais que se procurasse, nada se encontrava. Até que em 1965, dois astrofísicos americanos estavam a levar a cabo trabalho experimental numa grande antena de comunicações […] quando depararam com um irritante barulho de fundo, uma espécie de assobio provocado por vapor. […] Andaram um ano a tentar eliminá-lo. […] Em desespero de causa, decidiram ligar aos cientistas da Universidade de Princeton, a quem relataram o que estava a acontecer e pediram uma explicação. E a explicação veio. Era o eco do Big Bang. […] O que eles estavam a captar era a luz mais antiga que chegou até nós, uma luz que o tempo tinha transformado em microondas. Chama-se a isso radiação de fundo […]
Oiçam, nunca vos aconteceu ligarem um televisor numa frequência em que não há emissão? […] Vemos aqueles pontinhos todos a pulularem no ecrã e um ruído enervante, assim crrrrrrrrr, não é? Pois ficam a saber que um por cento desse efeito é proveniente deste eco. […] Portanto, se um dia estiverem a ver televisão e nada vos interessar, sugiro-vos que sintonizem um canal sem programação e fiquem a ver o nascimento do Universo. Não há melhor reality show que esse.
José Rodrigues dos Santos, A Fórmula de Deus

Não direi que teria sido preferível ligar o aparelho de televisão num canal sem programação e deliciar-me com o nascimento do Universo em vez de ler a Fórmula de Deus de José Rodrigues dos Santos, mas confesso que me desiludiu bastante. Depois do Codex 632 esperava bem mais do que aquilo que me foi oferecido. O livro é, por vezes, um longo e maçador bocejo, entrecortado por uns arreliadores sons guturais de quase todos os personagens: Hu! Das quase seis centenas de páginas do romance, umas boas quatrocentas são de palha, o que é uma pena, além, claro, de um nada ecológico desperdício de papel.
Se o escritor tivesse seguido os ensinamentos do monge Tenzing, teria usado de mais parcimónia no uso das palavras e obraria, certamente, uma obra mais económica. Em vez disso, esbanjou-as a seu bel-prazer, resultando daí um livro, por vezes, entediante e repetitivo.

08 março 2007

PARA TODAS AS MULHERES


Para todas(1) as mulheres: para as minhas, cá de casa, para as dos meus amigos, para as da minha família, para as do meu país, para aquelas que sofrem, para aquelas que todos os dias são vilipendiadas, para aquelas que lutam por um mundo melhor e para aquelas que já desistiram de lutar. Para todas as mulheres do mundo, o meu reconhecimento: sem vocês tudo seria muito mais monótono. Oh, se seria…
Socorro-me do poeta que diz as coisas melhor que eu digo:
ETERNO FEMININO

Voltei, ninfas amigas!
Quem pode resistir a um fresco aceno
De donzelas despidas?
Fiel devoto da nudez da vida,
Tinha sede de ver-vos distraídas
A correr pela terra ressequida.

Serei criança, mas voltei de novo
Ao vosso altar sagrado.
Ou não fosse eu poeta!
Ou não me desse a imagem do passado
Uma esperança secreta…

Vim, e que o mundo murmure,
Ninfas de cada fonte!
Que me importo que digam que enlouqueço
Junto de vós?
Quero é beijar-vos, é beber,
E sentir-me no fim purificado…
Só deusas verdadeiras podem ter
Um corpo tão perfeito e tão lavado.

Miguel Torga
(1) Mesmo para umas que eu cá sei. Que tenham um bom dia e que a caganeira lhes venha só amanhã.