24 outubro 2006

ENQUANTO SALAZAR DORMIA...

Mary deu uma gargalhada e Rita desconcentrou-se, rindo. Tirei a venda dos olhos e vi-as, as duas seminuas à minha frente. […] Abracei-as e trocámos beijos os três. Depois caímos sobre a cama, enroscados uns nos outros e amámo-nos a três em desvario. Como se um tremendo cataclismo aí viesse e só nos restassem poucas horas sobre a Terra.



No início dos anos 40 do século passado o mundo era fustigado por uma guerra como a humanidade jamais tinha visto. Com a vizinha Espanha devastada por 3 anos de uma feroz guerra fratricida e o resto da Europa a ferro e fogo, restava Portugal, um oásis de paz e tranquilidade, para onde fugia a Europa que tinha pernas para o fazer. A pastelaria [Suiça], onde a afluência de refugiados obrigara a abrir uma esplanada para a rua, fora baptizada pelos portugueses de «Bompernasse», pois podiam observar-se por lá muitas e belas pernas de mulheres estrangeiras. Francesas, belgas, holandesas, judias da Alemanha ou da Polónia calçavam soquettes, saíam à rua sem meias, luvas ou chapéus, e penteavam o cabelo curto «à refugiada». Aliviadas por terem escapado à guerra, aos black outs, às bombas ou às perseguições da Gestapo, viviam Lisboa como um oásis, um nirvana de paz e felicidade, e mostravam as pernas ao sol, lendo revistas e fumando cigarros, numa animação estranha aos costumes lusitanos.
É nesta Lisboa cosmopolita que se cruzam reis, príncipes, banqueiros, capitalistas, judeus e, enquanto Salazar dorme, guerreiam-se os serviços de inteligências de ambas as facções beligerantes. Se há coisa que não falta no meu hotel é gente famosa. Na semana passada, além dos Gulbenkian, na segunda jantou lá o rei Carol da Roménia, com a sua bailarina Lopescu! Na terça almoçou o Guggenheim! Na quarta, apareceu para jantar a baronesa Rotschild, com o Ricardo Espírito Santo e, na sexta, a grã-duquesa Carlota do Luxemburgo.
O narrador, um luso britânico, filho de pai Inglês e mãe Portuguesa, é um antigo agente dos serviços secretos britânicos que, passados 50 anos, regressa a Lisboa e peregrina pelos locais que guarda na memória, recordando todas as peripécias vividas na altura.
O livro, de Domingos Amaral, é de uma leitura agradável. Recria o ambiente do Portugal dos anos 40, o glamour dos hotéis de luxo de Lisboa e do Estoril e revela algumas situações pitorescas como a da família Gulbenkian: É uma família curiosa.Ele instala-se no Aviz, a mulher no Palácio do Estoril. Depois, almoçam juntos no […] hotel, mas fazem-no em mesas separadas, cada um com os seus convidados.



PS: Quando, pelo menos alguns de nós, chegarmos aos 80 anos, seremos, talvez, como os pescadores quando desatam a contar histórias de pescarias: aumentam sempre três palmos ao peixe. O agente Jack Gil Mascarenhas Deane tinha chegado já aos 80 quando nos relatou a história por si vivida, 50 anos antes. Mesmo que por vezes se tenha entusiasmado a descrever aqueles pormenores mais íntimos e tenha feito como os pescadores, esta é, com efeito, uma bela história.
Enquanto lia as aventuras do agente Jack Gil lembrei-me de outro herói luso britânico: o piloto da RAF Jaime Eduardo de Cook e Alvega. O livro não o revela mas será que os dois não se terão cruzado na Lisboa de 40?

18 outubro 2006

PEDRO CAMACHO

No seu último monólogo da hora de jantar – sua homilia dominical, como já alguém se lhe referiu –, Marcelo Rebelo de Sousa, reportando-se ao último tiro no pé dado pelo tontinho do ministro da Economia, disse que não foi por mal que o governante assim falou e que, de qualquer modo, nem era bem isso que ele queria dizer. Só soou assim porque o ministro em questão possui um vocabulário pobrezinho, fruto das suas parcas leituras quando era pequeno. O professor lá saberá do que fala.
Desconheço a maior ou menor frugalidade das suas primeiras leituras, de qualquer modo, atrever-me-ia a recomendar ao senhor ministro uma deliciosa leitura: nem mais nem menos do que “A Tia Júlia e o Escrevedor” de Mário Vargas Llosa. A obra, ao que me constou, tem muito de autobiográfico, mas o que gostava de chamar a atenção era para uma extraordinária personagem que dá pelo nome de Pedro Camacho. A acção desenrola-se nos anos 50, na época dourada da rádio e das radionovelas. Uma emissora de Lima, para a qual o Varguitas preparava os noticiários nos intervalos dos seus afazeres académicos de aluno na faculdade de Direito da Universidade de Lima, tentando combater a audiência de uma emissora concorrente, contratou a certa altura o novelista Boliviano Pedro Camacho. Este viria a revelar-se de uma extraordinária fecundidade, conseguindo escrever três ou quatro histórias em simultâneo, fazendo-o, praticamente, na hora em que iriam ser transmitidas. O êxito das radionovelas deste homem foi estrondoso. A certo ponto, porém, os ouvintes começaram a notar que as personagens de uma história começavam a aparecer noutra e algumas personagens eram cópias fiéis de pessoas reais.
Não desvendarei mais nada da história. Um eventual leitor poderia perder o interesse pela leitura integral da obra. Direi apenas ao nosso ministro da Economia que, em vez de confundir a realidade com a ficção, melhor fora que, qual Pedro Camacho, confundisse a ficção com a realidade.

14 outubro 2006

A CRISE ACABOU!

Ontem, ao ouvir o ministro Manuel Pinho anunciar uma refinaria do Monteiro de Barros, ainda maior do que a primeira, lembrei-me, não sei porquê, do gato da Whiskas. Num anúncio, que por estes dias vai passando nas televisões, a dona chega das compras e, mal entra em casa, começa a bombardear o sansão – acho que não é bem este o nome do animal, mas, pelo menos por hoje, passará a sê-lo – de verborreia. O bicho, não sei se por fome se por cansaço, interpreta do palavreado da patroa: blá, blá, blá,… whiskas,… blá, blá, blá,… whiskas,… blá, blá, blá…
Nos últimos dias tem sido grande a azáfama que reina nas reuniões do governo. Os últimos protestos de rua parece que foram em grande. Alguns jornais disseram-no com todas as letras: manifestações como Lisboa já não via desde a revolução! – vamos lá a metê-los na ordem! De modo que toca a puxar pelos miolos – temos que anestesiar a populaça!
Já sei! – exclamou o chefe. E todo o grupo, mais embevecido ainda, espera avidamente a ideia iluminada do grande líder -, vamos anunciar uma grande refinaria!
Alguém, timidamente, lembrou que essa tinha sido já anunciada. Então anuncia-se outra muito maior que a primeira! Todos deram vivas e agradeceram a Deus – cada um ao seu, claro! – tê-los presenteado com aquele grande timoneiro. Só mais uma coisa – disse –, como se trata de uma refinaria é o Manel Pinho que o vai anunciar à Nação.


Post Scriptum: tenha ou não acabado a crise – embora, por vezes, possam ajudar, o povo não se alimenta de palavras, alimenta-se com o dinheiro que tem no bolso – este governo continua a ser bafejado pela sorte. Então não é que continua a haver jackpot no euro milhões. Com o pensamento em cem milhões quem é que vai ligar a greves ou manifestações? Até sexta à noite o governo está à vontade para continuar com as suas maquinações.

02 outubro 2006

OS ÁRBITROS E O REI HIERON DE SIRACUSA

Ontem, ao ler a notícia dos presentes, em ouro falsificado, oferecidos aos árbitros, lembrei-me do Rei Hieron de Siracusa.
Conta-se – conta-nos Vitrúvio, arquitecto Romano do séc. I a.C. – que o Rei Hieron II, desejando obsequiar as divindades com um presente à altura da sua real dignidade, decidiu oferecer-lhes uma coroa em ouro maciço. Mandou procurar o melhor ourives do reino e entregou-lhe uma generosa quantidade desse metal.
No dia aprazado o ourives entregou ao soberano uma coroa ricamente cinzelada. Vá lá saber-se porquê, ao espírito do monarca começam a assomar algumas dúvidas acerca da fidelidade do trabalho do artista. A coroa tinha exactamente o peso do ouro que o rei lhe tinha entregue, mas quem lhe garantia que uma parte não foi substituída por outro metal? Por prata, por exemplo. Querendo uma resposta para a dúvida que o atormentava, Hieron confiou a Arquimedes a tarefa de resolver o enigma.
Vitrúvio, que nos conta a história, viveu dois séculos depois de Arquimedes. Talvez que durante todo esse tempo a história tivesse sido, digamos, boleada. Mas é uma bela história.
Estando no balneário público, enquanto ia imergindo no tanque, Arquimedes reparava que a água ia subindo. Na sua mente apareceu, então, a solução do problema do Rei Hieron: “Todo corpo mergulhado total ou parcialmente num líquido sofre um impulso vertical, de baixo para cima, igual ao peso do volume do líquido deslocado."
A sua alegria foi tal que, sem reparar sequer que estava completamente nu, saiu das termas e precipitou-se pelas ruas de Siracusa, exclamando: “- Eureka! Eureka!”.
A história diz-nos que Arquimedes descobriu que o ourives tinha substituído uma parte do ouro pelo mesmo peso em prata e, diz-se, por sua intercessão, o monarca não terá punido o trafulha. Ao fim e ao cabo, não fora ele e essa importante descoberta teria de esperar.
Os nossos corruptos árbitros nunca duvidaram da autenticidade das prendas que lhes ofereciam, e, mesmo que duvidassem, nem conheciam o Arquimedes nem a história do Rei Hieron, por isso é que, sabe-se agora, foram presenteados com prendas de ouro falsificado para comprar os seus favores.
Os nossos corruptos árbitros. Corruptos a simplórios.