29 dezembro 2011

O MEU CONTO DE NATAL

Capítulo I
AINDA UM DIA HEI-DE ESCREVER COISAS ASSIM...

Se mo perguntassem não saberia explicar porquê, o certo é que, chegada a época do natal, aquela época em que a rua fica engalanada com luzinhas multicolores e laçarotes vermelhos e as pessoas se mostram mais simpáticas, dou por mim a sonhar com grandes feitos literários. Há anos que ocupo um lugar privilegiado para espreitar os livros que os clientes vão folheando e há frases que recordo a cada passo: “Muitos anos mais tarde, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo”, é das minhas preferidas. É a primeira frase de um livro. Agora que me vem à memória… que teria feito o coronel Aureliano para merecer tal sorte? Grande coisa não terá sido para se passar assim pelas armas um coronel, mas ouve-se por aí cada coisa que o melhor é não nos deitarmos a adivinhar. “… aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo”, ah, como gostaria de ter sido eu a escrevê-la… 
- Desculpe, posso ser-lhe útil em alguma coisa?
- Pode sim senhor! Queria comprar uma caneta para oferecer.
- Com certeza, queira acompanhar-me, por favor.
A simples alusão a caneta teve o condão de me despertar dos meus sonhos - ou devaneios, não sei -, e olhar para quem assim falava. Um homem alto, de barriga proeminente e faces rosadas seguia já o empregado. Vi-os aproximar-se. Temos aqui esta Parker, material de confiança – dizia o empregado -, com uma óptima relação qualidade preço, ou então esta Sheaffer, modelo clássico, de uma fiabilidade a toda a prova ou ainda esta Rotring, com um design mais moderno mas com uma ergonomia irrepreensível ou... - O empregado ia desfiando a ladainha mil vezes repetida mas o barrigudo nem o ouvia, absorto que estava a observar todas as canetas do mostruário ou, valha a verdade, mais o pedacinho de cartolina preso por um fio a cada caneta do que a própria caneta. Até que, de repente, vi um dedo grosso a apontar para mim:
- Quero esta!
O empregado, apanhado assim à falsa fé, ficou momentaneamente aturdido mas logo se recompôs:
- Uma óptima escolha. É sem dúvida o melhor exemplar de que dispomos na nossa loja.
- Então embrulhe-ma. Vou oferecê-la a um grande amigo meu.
- Com certeza.
E enquanto me iam fechando na escuridão do meu sarcófago de papel de fantasia dei por mim a pensar, sabe-se lá porquê, que todos os meus sonhos não passavam disso mesmo.
Não sei o tempo que passou: se dias se semanas. Na escuridão perde-se a noção do tempo. Uma vez tinha lido isso e achei que o escritor, sendo um romance épico, o tinha lá posto apenas porque ficava bem, mas agora, assim fechada no escuro, tinha a prova que afinal, sendo sempre noite, não se consegue ter a percepção da passagem do tempo, mas por fim lá sou sacudida mais uma vez e volto a ver a luz. Primeiro por uma nesga que foi abrindo, abrindo, até o papel de fantasia ser todo arrancado.
- Outra esferográfica! Aquele vaidoso do Antunes sempre com a mania das ofertas finas. Há-de pensar que sou escritor. E ainda por cima com aparo. Sabe que não me ajeito com estas coisas e toca de me dar uma…
- Olha, uma boa prenda para ofereceres. Há-de haver gente que dá grande valor a essas coisas. Devia ser a esposa do grande amigo. Silenciosa como estava, mais interessada no programa da televisão do que nas prendas do marido, ainda não tinha dado por ela.
Não fora o grosso anel de ouro que usava no mindinho da mão direita e um nadinha menos de barriga, dir-se-ia que o Antunes e o grande amigo eram uma e a mesma pessoa. Depois de me observar sumariamente, deixou-me esquecida em cima de uma mesa antes de, ao fim da noite, atirar comigo para uma gaveta. Quando a escuridão voltou a derramar-se sobre mim senti que o mundo todo desabava e entrevi, então, pela segunda vez, o fim dos meus sonhos. Mas recusei render-me: não seria a reclusão numa gaveta que me venceria. Claro que seria custoso passar os dias no escuro sem ao menos poder espreitar os livros que os clientes da loja iam folheando ou ouvir uma ou outra conversa sobre as novidades que iam saindo mas continuaria a sonhar. E depois as palavras da mulher “Há-de haver gente que dá grande valor a essas coisas” que continuavam a ecoar na minha cabeça seriam o antídoto a que poderia recorrer sempre que o desalento ameaçasse instalar-se no meu espírito. Um dia, tenho a certeza, escreverei um texto como aquele que foi lido a um rei e que começava assim: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher.

Continua...

PS. O desafio que faço aos eventuais leitores é que comecem a pensar nos próximos capítulos de modo a enriquecer a pobreza franciscana deste, digamos, urbano conto de natal. Fico à espera de contribuições.

23 outubro 2011

INSTANTES QUE BRILHAM

A história passou-se vai para mais de 20 anos. Por alturas da primeira guerra do golfo, quando na contenda ainda não tinha sido dado o primeiro tiro, ocupados que estavam os contendores a contar espingardas, um repórter conseguiu chegar à fala com o comandante de uma célebre companhia britânica que tinha a fama, e, ao que dizem, também o proveito, de fazer sempre o “trabalho” bem feito. Não me recordo já da maioria das perguntas que o jornalista fez mas há uma que continua vívida na minha memória como se tivesse sido feita ainda hoje: qual o segredo para que a companhia seja sempre tão eficaz no cumprimento das missões que lhe são cometidas?
Não é de bom tom o entrevistador expor na entrevista os seus estados de alma, pretende-se, isso sim, que leve o outro a revelar os seus, mas não será difícil de adivinhar aquilo que esperaria ouvir na resposta do coronel: muito treino, muita garra, muita bravura, armas do tempo da guerra das estrelas e outras coisas do mesmo jaez, por isso imagino a cara de indisfarçável assombro do periodista quando ouviu o coronel responder candidamente que o segredo estava no estômago. «Os meus homens sabem que têm as suas necessidades básicas asseguradas e a necessidade primeira é a alimentação. Um soldado esfomeado jamais conseguirá cumprir convenientemente a sua missão».
A Escola Básica da Abelheira conseguiu, nos exames nacionais do 9.º ano de Matemática de 2011, o melhor resultado do país entre as escolas básicas da rede pública. Quando tomei conhecimento desta verdadeira lança em África conseguida pela minha escola, veio-me à memória a admirável historia do Coronel que velava pelo estômago dos seus soldados para que estes se concentrassem, unicamente, naquilo que foram ensinados a fazer. Lembrei-me deste episódio marcial e pensei em como conseguiríamos muito mais se nos fossem asseguradas as necessidades básicas, a começar por uma equipa dirigente que realmente soubesse o que é uma escola, não aquela escola etérea que se consegue divisar do alto dos gabinetes climatizados do ministério mas sim uma escola real, uma escola que só se consegue conhecer descendo ao nível do solo. Não temos tido essa sorte. Há anos que assistimos impotentes à inexorável destruição de tudo o que de bom tinha sido conseguido ao longo de anos e anos de trabalho abnegado. Chegamos a um ponto crítico e isso traz-me à memória os versos do poeta colombiano, Guillermo Valencia, “Há um instante no crepúsculo / em que as coisas brilham mais”. O crepúsculo é aquela parte do dia de claridade mais frouxa que tanto pode anunciar a escuridão da noite como o clarão do dia. Não me recordo já a qual se referia o poeta, e para o caso isso pouca importância terá, mas obrigo-me a pensar que este é o crepúsculo anunciador de um dia radioso. Depois deste resultado continuaremos a trabalhar com o mesmo empenho de sempre e, se calhar, com ânimo redobrado. A satisfação com que todos recebemos a notícia permite afirmá-lo com segurança. Para o ano conseguiremos, certamente, bons resultados nos exames nacionais e, mesmo que as necessidades básicas nos continuem a ser sonegadas, continuaremos a trabalhar com o empenho de sempre.

01 agosto 2011

MAS A FILOSOFIA HOJE ME AUXILIA


O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome.
Mas a filosofia
Hoje me auxilia
A viver indiferente assim.
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Para ninguém zombar de mim.
[…]

“Filosofia”, Noel Rosa, 1933


Depois de ter perdido as eleições e se ter despedido dos correligionários com um enternecedor «adoro-vos», Sócrates confidenciou aos mais chegados que era sua intenção tirar um ano para se dedicar ao estudo da Filosofia em Paris. Desconheço se tomou já o seu lugar nos bancos da escola, não sei até se as aulas serão presenciais ou à distância – à distância de um faxe ou de um e-mail, se o homem, que tem fama de analfabeto cibernético, já se conseguir desenrascar -, um método tão do seu agrado, mas a fazer fé nas palavras do amigo Mário Soares, esse velho sapo que em tempos o apelidou de «o pior do Guterrismo», o homem vai mesmo para o Quartier Latin. Numa entrevista a Clara Ferreira Alves, na Única, depois de dizer que Sócrates «é belicoso», «Não tem tacto político para ouvir as pessoas sem responder logo» e que «não foi muito claro nem transparente», remata afirmando que «Não é um socialista como eu. Ele foi para a Sorbonne estudar para perceber isso. É bom que vá estudar». E que fique por lá se o quiserem, acrescentaria eu.
Para o convencer a não regressar a este antro de invejosos que não querem saber sequer se vai morrer de sede ou se vai morrer de fome, envio-lhe um extracto do poema “Filosofia” de Noel Rosa que Chico Buarque de Hollanda incluiu no seu álbum "Sinal Fechado" de 1974.

26 junho 2011

A TERRA TODA, OS CEGOS E O ELEFANTE.

Um dia quatro cegos apalpavam um elefante. Um deles tocou-lhe na perna e logo exclamou:
- O elefante é como um pilar!
O segundo, que tacteava a tromba do bicho, disse:
- Não, o elefante é como uma serpente!
O terceiro apalpou a barriga do paquiderme e afirmou:
- Não, não. Não têm razão. O elefante é igual a um tonel!
Finalmente, o quarto cego, que acariciava as orelhas do animal, naquela forma definitiva dos “cegos”, afiançou:
- O elefante é como um abano!
Então, começaram a discutir entre si, a forma e o aspecto do animal e, quase chegaram a vias de facto. Um transeunte, vendo-os discutir, perguntou-lhes o que se passava. Cada um deles apresentou os seus pontos de vista e, no fim, pediram-lhe para decidir qual deles tinha razão. O transeunte, depois de meditar alguns momentos, sentenciou:
- Nenhum de vocês viu o elefante!
Vezes sem conta lembro-me desta parábola admirável. Ontem, depois de ter acabado de ler o último livro de José Manuel Saraiva, lembrei-me, mais uma vez, dos cegos e do elefante.
Rafael, personagem principal do romance, acabado de chegar aos sessenta anos, é abandonado por Sara, sua companheira dos últimos quatro. O episódio atira-o para uma depressão que a pouco e pouco o vai consumindo. Depois de muito instado por um amigo, lá resolve procurar a ajuda de uma psiquiatra que, no dizer do conselheiro, o irá para sempre libertar da solidão que o consome e das ideias que o mortificam. Em grande parte, o livro gira à volta das sessões com a psiquiatra Clara Gautier e é precisamente da primeira dessas sessões, que agora, finda a leitura, eu me recordo.
Depois de muito esforço - «Acredite que não foi fácil chegar até aqui, doutora» -, Rafael lá se decide encontrar com a clínica. O primeiro capítulo do livro relata a primeira sessão do programa de tratamento. O doente está ali para falar, e o médico só de quando em vez introduz uma ou outra pedrinha no discurso não para o travar mas, tão só, para o direccionar. E Rafael falou. Falou de Sara e de todos os gestos simples do dia-a-dia, mesmo daqueles que um amante empedernido como eu acharia sem qualquer significado. Falou do pai e da mãe como o teriam feito o Tony Soprano ou o Alexander Portnoy. Falou de casamento e de traição, falou de amor e de ódio, falou de verdade e de mentira, falou de tudo e falou de nada. E fê-lo com um discurso tão redondo, com umas frases tão concordantes, que eu pensei logo ali, no final do primeiro capítulo, ter encontrado a óbvia razão para o abandono da Sara: Cansou-se! Cansou-se de o ouvir e partiu para outra.
Vejo agora que aquele primeiro discurso transportava já sinais que indiciavam uma mente perturbada, mas eu, que não sou psicanalista e que acabo mesmo de ver esfumar-se alguma ténue ilusão, que pudesse ainda subsistir, de um dia vir a sentar alguém no meu divã, eu, dizia, não os consegui ler e, qual cego da parábola, quis logo tirar conclusões definitivas no final do primeiro capítulo. Erro meu. O último livro de José Manuel Saraiva, “A Terra Toda” é para se ir apalpando, tacteando, acariciando as páginas todas que só assim se compreenderá a mente intrincada de Rafael moldada pelas circunstâncias de uma existência difícil.

também publicado em conversa.com

25 abril 2011

VALERÁ A PENA?


"Poder-se-á perguntar, com aparente pertinência e justificada razão se, agora, com Portugal a viver horas amargas de crise, angústia e incerteza, importaria comemorar Abril.
Na verdade, importará fazê-lo, neste tempo em que os medos reemergiram no nosso quotidiano, em que o regresso da fome, que grassa um pouco por todo o País, acutiladamente nos surpreende e contende, em que obrigados somos a dobrar a cerviz perante os ditames estrangeiros, em que se duvida que haja fundada esperança em melhores dias?"


Extracto do discurso do ex-presidente Ramalho Eanes, proferido no Palácio de Belém, durante as comemorações do 37.º aniversário da Revolução de Abril

24 abril 2011

ATÉ QUANDO?


Um dia, um empresário com medo de andar de avião, telefonou para uma agência de viagens, procurando inteirar-se da probabilidade de haver uma bomba a bordo. O funcionário da agência achou a pergunta estranha, mesmo para os tempos que correm, mas, habituado a ouvir perguntas estranhas, lá foi dizendo que a probabilidade de isso acontecer era muito baixa, não mais do que 1 para 10000. O empresário, parecendo não ficar muito satisfeito com a resposta, agradeceu e desligou. Pouco depois o telefone da agência voltou a tocar. Era novamente o senhor da bomba. Agora queria saber qual seria a probabilidade de haver duas bombas a bordo do mesmo avião. Se já a primeira pergunta lhe pareceu disparatada esta ainda mais, mas, conhecedor do cálculo de probabilidades, o funcionário da agência de viagens lá lhe foi dizendo que a probabilidade de haver duas bombas a bordo do mesmo avião era insignificante. Seria o quadrado da probabilidade de haver apenas uma, logo, não mais do que 1 para 100 000 000. Agora sim, o assustadiço homem de negócios ficou contente com a resposta. Agradeceu calorosamente e desligou.
Algum tempo mais tarde, o funcionário da agência de viagens leu num jornal que num aeroporto tinha sido preso um passageiro que se preparava para embarcar com uma bomba na bagagem. Quando a polícia o interrogou, disse que levava a bomba na mala apenas para diminuir o risco de haver uma bomba a bordo.
Lembro-me desta deliciosa história, contada pelo matemático americano John Allen Paulos, sempre que oiço os nossos políticos a falarem de números, de percentagens e de estatísticas. Onde nós, ignorantes, vemos desgraça nos números do desemprego vem um ministro e diz que, comparando com não sei quê, estamos no bom caminho; onde nós, agoirentos, vemos a taxa de crescimento a apontar para o chão vem um secretário de estado dizer-nos que se compararmos com não sei quanto o amanhã será risonho; onde nós, desconfiados, vemos criatividade na opulência dos resultados dos exames de Matemática, lá temos o porta-voz do governo para nos lembrar que somos pobres e mal agradecidos e já não conseguimos, sequer, acreditar nas capacidades dos nossos jovens. Enfim, estamos na mão de gente tão ignorante quão perigosa. Ainda ontem o INE nos veio dizer que afinal o deficit de 2010 não foi de 6,9 nem de 8,6 mas sim de 9,1% do Produto Interno Bruto. E o nosso drama é que nem sabemos sequer se a desgraça se fica por aqui. Os nossos políticos que enchem a boca com juras de amor à pátria e promessas de trabalho incansável e desinteressado em prol do bem comum, andam, isso sim, a espalhar bombas por todo o lado, armadilhando o futuro de todo um povo. E, note-se, até nisso a sua incompetência salta à vista: colocaram as bombas para estourar quando eles já estivessem a salvo e afinal eis que lhes começam a rebentar nas mãos. Estamos, pelo menos há seis anos, nas mãos de um bando de prestidigitadores. Até quando?

23 abril 2011

PÁSCOA FELIZ

... e ainda para os que chamam nomes ao Sócrates, ao Teixeira e àquele da boquinha de peixe de que não me lembra o nome. E também para os Irlandeses, para os Gregos e para os falsos Finlandeses. E para todos os cem mil que há três anos desancaram na Lulu e os trezentos mil de doze de Março. E para as colegas de trabalho - e vá lá, para os colegas - e para todos os outros de que me não lembro agora.

21 março 2011

TEMPO QUASE PERFEITO


Ontem chegaram as primeiras andorinhas. A Primavera “rebenta” por aí e não tarda, os jacarandás estarão em flor. Não fora uns imbecis que todos os dias nos atormentam e este seria um tempo perfeito.
Hoje é o dia da poesia e para o comemorar escolhi um belo poema de Alfonso Castelao, um poeta popular Galego, que Dulce Pontes canta admiravelmente: Lela.


LELA

Están as nubes chorando
Por un amor que morreu
Están as ruas molladas
De tanto como choveu

Lela, Lela
Lelina por quen eu morro
Quero mirarme
Nas meninas dos teus ollos

Non me deixes
E ten compasión de min
Sen ti non podo
Sen ti non podo vivir

Dame alento das tuas palabras
Dame celme do teu corazón
Dame lume das tuas miradas
Dame vida co teu dulce amor

Alfonso Castelao, 1886/1950

19 março 2011

QUANDO EU MORRER...


[...]

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.
[...]

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos"

15 março 2011

SERENIDADE

No meio da desolação causada pelo desastre, um japonês de cabelo grisalho, com o telefone emprestado pelo jornalista português, avisa, finalmente, o filho na América, que perdeu tudo mas salvou a vida: «Tive muita sorte», dizia. Depois da chamada, em conversa com o português, confessava que o único conforto que lhe restava ainda, era a lua radiosa e as estrelas a brilhar no escuro da noite.
Um dia, se fosse, também, atingido por uma desgraça, gostava de ter esta serenidade e este desprendimento para dizer o mesmo.
Do alto da poltrona onde me encontro, olhando aterrado o horror e a destruição, lembro-me de John Kennedy: «Eu sou um Japonês!»

12 março 2011

OPÇÕES

Quando li na imprensa que, no ano passado, Silvio Berlusconi tinha gasto 34 milhões de euros em prendas para as amigas lembrei-me do vaidosão do nosso primeiro-ministro. Pelos vistos aqueles fatinhos que ele veste e que de vez em quando, para seu gáudio, uma ou outra revista da especialidade diz que lhe ficam bem, são comprados no Rodeo Drive em Beverly Hills, ao que dizem, a loja mais cara do mundo. Quanto ao local onde faz as compras até se compreende, o homem sempre teve propensão para representar, mas dar 50 dólares por umas peúgas e 50 mil por um fato é obra, para não dizer coisa pior. Não que tenha algo a ver com o modo como o homem gasto o dinheiro que ganhou com o suor do seu rosto, mas não gosto nada de ver escrito no cristal da montra da lojinha exclusiva onde só entra um cliente de cada vez: «primeiro ministro de Portugal». Os americanos que por lá passam e lêem o nome dos clientes, se souberem o que é Portugal, devem pensar o mesmo que eu quando penso nos luxos de que se rodeiam alguns líderes africanos no meio da pobreza mais abjecta.
Mas voltemos a Il Cavaliere: eu, que sou do Sul e um bocado para o Marialva, confesso que apreciaria mais ter lido no jornal que o primeiro ministro de Portugal gastou 50 mil em putas do que o ter gasto num fatinho por medida na casa de Bijan.

08 março 2011

DIA INTERNACIONAL DA MULHER


estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.
[...]

José Luís Peixoto, "a mulher mais bonita do mundo"

06 março 2011

CRÓNICAS POUCO REACCIONÁRIAS

Um dia, um dirigente de uma poderosa estação de televisão, do qual não me lembra nome nem condição, procurando exemplificar o poder da TV dizia: «Se a televisão não mostrou o incêndio na floresta, será que ela, realmente, ardeu?»
Vezes sem conta tenho-me lembrado desta tirada premonitória. Depois de ter lido o último livro de António de Sousa Homem, veio-me, novamente, à memória, o episódio do incêndio da floresta.
António de Sousa Homem nasceu no Porto, fará por estes dias, 91 anos, mas desde a década de oitenta do século passado que vive em Moledo. Assim mesmo: Moledo. A importância da terra não exige o “do Minho” para que todos saibam de que se trata.
António de Sousa Homem é um velho reaccionário. Imagino-o no melhor quarto do ermitério de Moledo - como carinhosamente gosta de chamar à sua casa -, com vista para o oceano, rodeado de livros, de mesuras e de cuidados, vigiando as nórdicas no areal, não pelas razões inconfessáveis que o faria esse outro velho sapo das Caraíbas, mas apenas para que qualquer Frísia de pele tisnada pelas inclemências do clima minhoto, não venha perturbar a paz familiar nem a ordem natural das coisas.
O livro é uma compilação de crónicas. Dúzias e dúzias de crónicas onde o velho celibatário minhoto perscruta o quotidiano da terra, reverencia a vida e a obra do velho Doutor Homem, seu pai, e, qual sátiro sem vergonha, xinga com a distinção da família que continua a venerar o senhor Dom Miguel. Verão após verão, assusta-se com as hordas de veraneantes que lhe entram pelas portas adentro e por lá acampam até finais de Agosto. O Doutor é um homem atento. Recordando o episódio do incêndio na floresta: se a crónica o não noticiou será que, realmente, houve nortada em Moledo?
O Dr. Homem “repete-se até à eternidade convencido de que tem, ainda, alguma coisa para dizer, mesmo num país que preza galantemente a ignorância” mas é com um prazer imenso que da primeira à última página o leitor toma conhecimento dos devaneios amorosos do tio Alberto, das dúvidas existenciais da sobrinha Maria Luísa, dos medos da tia Benedita e das aventuras do sobrinho Pedro. O Dr. Homem pode repetir-se, já ganhou permissão para tal e, de qualquer modo, não se pode chamar a isso repetir, é, tão somente, vincar bem as ideias.
Proximamente, António de Sousa Homem vem à Biblioteca Municipal falar do seu último livro de crónicas: “Um Promontório em Moledo”. Lá estarei para ouvir as suas histórias. Como se fora a primeira vez.

08 fevereiro 2011

E FAZEM MESMO FALTA?

No manuseio do comando da televisão não fico nada atrás de um qualquer adolescente a escrever mensagens no telemóvel. Não que tenha especial destreza nos polegares mas o facto de ter apenas dois ou três canais, a que dedico algum interesse, permite-me lá chegar de olhos fechados. Não quero com isto dizer que num momento de maior pachorra não passeie pelas restantes teclas. Com um pouco de sorte encontram-se coisas extraordinárias. Há uns dias, no Porto Canal, penso que numa mesa redonda – estes passeios nunca dão para a gente se deter mais do que breves momentos em cada capelinha – às tantas arrazoa um dos intervenientes: Aliás, é até perigoso colocar o problema dessa maneira (o problema a que se referia era a diminuição do número de deputados na Assembleia da República), a opinião pública - continuava a discorrer a criatura -, podia, até, pensar que os deputados não estavam lá a fazer nada.
No início da semana a imprensa dava conta de um estudo que concluía que umas boas gargalhadas prolongam a vida. Depois de ouvir um dos “bons nabos do hemiciclo” discorrer sobre o número de deputados – e a nobreza com que o fez – as gargalhadas que dei asseguram-me, pelo menos, mais três quartos de hora de vida.