22 dezembro 2012

CONTO DE NATAL



O SONHO DO SEBASTIÃO

Faz quase dois anos que a sua vida é uma peregrinação pelas oficinas, pelos estaleiros e pelas quintas das redondezas. Quando arranja um pequeno trabalho – apanhar a fruta num pomar, reparar um muro danificado pelas asperezas do último inverno, preparar os cascos que hão de receber o vinho novo – a vida como que ganha um novo significado. É vê-lo, manhã cedo, partir para o trabalho cabeça bem ao alto distribuindo sonoros cumprimentos a todos os que com ele se cruzam. E enquanto labuta imagina a alegria dos pequenos quando, à tardinha, ouvirem o trinco da cancela. Imagina a alegria dos seus e pensa em todos os outros que à noite irão para a cama de estômago vazio e não consegue evitar que os olhos se lhe inundem. E então chora, chora por si, chora pela Mariana que é a âncora da família, chora pelos seus pequenos e chora por todas as crianças do mundo.
Hoje, Sebastião, não conseguiu trabalho. Depois do magro almoço, Mariana agasalhou os filhos, corrigiu o casaco ao marido e impô-los pela porta fora: «Ala, vão passear, ver os pássaros, e não voltem antes do anoitecer!» E os três lá foram, felizes, pelos campos fora. Nalgumas covas mais abrigadas resistiam ainda alguns farrapos da neve caída na véspera que logo era transformada numa bola pelo primeiro a descobri-la. E admiraram-se com a perspicácia das trutas a subir o ribeiro. E seguiram, de nariz no ar, as revoadas de tordos de azeviche, espantando-se com as suas acrobacias aéreas. E, sempre que os conhecimentos de botânica do pai o permitiram, catalogaram as espécies desconhecidas que se lhes atravessaram no caminho. Até que chegou a hora. O sol, que andou tímido o dia todo, iria esconder-se não faltava muito. As crianças atiraram as últimas pedras à água do ribeiro e os três, empreenderam a viagem de regresso. Ainda as primeiras casas da aldeia não se viam e já, prodígios da meteorologia, os mil cheiros do natal, amplificados pela frugalidade imposta aos seus estômagos, chegavam até eles estugando-lhes o passo.
A mãe estava na cozinha. Envolta numa nuvem de vapor, que os três aspiraram sofregamente, preparava as últimas iguarias da ceia de Natal. Com as verduras da horta, os bicos da capoeira e o cabaz da assistência social, Mariana fazia maravilhas. «Vieram mesmo a tempo. Vá lá, lavem essas mãos e essas caras imundas e sentem-se que o jantar já não demora.» E foi um lauto jantar. As crianças podiam repetir as vezes que quisessem. E comeram batatas e as couves mais tenras da horta e escamudo como se fosse do melhor da Noruega e galinha com arremedos de peru e rabanadas e arroz doce e nozes e pinhões. O pai teve até direito a vinho quente com açúcar. Até que todos se fartaram. Agora era esperar a hora de abrir as prendas que a mãe, carinhosamente, tinha depositado debaixo do pinheirinho, armado num canto da cozinha. E os quatro, muito juntinhos, foram sentar-se à volta do borralho. A mãe, como sempre fazia, começou a contar histórias de Natal. Enquanto os pequenos bebiam avidamente as palavras, Sebastião, embevecido, olhava a mulher e pensava que não fora ela e há muito que a família se teria desmoronado. E enquanto pensava, as palavras do conto iam-se afastando, afastando, até não serem mais que um rumor impercetível e, ainda o Garrinchas não tinha chegado ao adro da ermida da Senhora dos Prazeres, já Sebastião, ajudado pelo vinho quente, adormecera.
Viu-se numa sala imensa. Na parede do fundo uma figura de mulher com os olhos vendados. Na mão esquerda segurava uma balança, na direita empunhava uma espada. Na metade oposta da sala, resguardada por uma sólida balaustrada de madeira, a assistência aguardava. Sebastião olhava à esquerda e à direita e via outros homens que como ele se recusavam a desistir. Até que o juiz, vestido de negro, com uma farta cabeleira branca aos caracóis que lhe chegava aos ombros, mandou entrar os réus. A porta abriu-se e começaram a entrar, cabisbaixos, os políticos que há décadas governam o país. Alguns conhecia-os, outros nunca os tinha visto e havia até alguns dirigentes de grandes empresas que nunca imaginou terem sido ministros. O espaço que lhes estava destinado ficou completamente cheio e a assistência, sem conseguir reprimir mais o asco por aquela gente, ia acusando, em surdina, um e outro: «Está a ver aquele ali? Sim, aquele, é o diretor de uma empresa que faz estradas e pontes e antes era ministro; e aquele ali, o do fato azul, mal chegou a ministro empregou toda a família no ministério. A filha acabou o curso e no dia seguinte estava a dirigir um gabinete como se tivesse vinte anos de experiência; olhe aquele, o do cabelo branco, esteve meia dúzia de anos no governo e está reformado. Ganha mais num mês que um de nós em dois anos. Um de nós, dos que temos emprego, claro; e aquele pulha, aquele magrinho, não é o do banco?»… Até que a voz tonitruante do juiz se fez ouvir: «Silêncio!»
Começou, então, por perguntar o nome a cada um dos acusados mesmo àqueles que todos na sala conheciam e, após obter a resposta, com o indicador espetado e semblante acusador, continuava: «Quando era governante, antes de tomar as decisões que viria a tomar, sabia que elas provocariam a crise que hoje afeta o nosso país e, mesmo assim, tomou-as. Hoje, como consequência das suas determinações, há crianças que passam fome e outras que desmaiam nas aulas por falta de alimento. Tem alguma coisa a dizer em sua defesa?» Quase todos continuaram no seu mutismo receoso e aqueles que ousavam encarar o juiz faziam-no com tanto temor que apenas lhe saíam algumas frases inaudíveis para a assistência mas que o juiz rebatia de imediato. Quando todos falaram, a sala quedou-se em silêncio. O juiz sentenciou então: «Os réus que hoje se apresentaram neste tribunal são culpados pelo estado a que o nosso país chegou. Não são merecedores de piedade. Defraudaram o povo que acreditou neles. Cumprirão todos pena de prisão.» A alegria na assistência foi esfuziante. Deram-se vivas e cantaram-se hossanas e nesse momento na cozinha da casa do Sebastião todos viram o sorriso que se lhe desenhou no rosto. As crianças concluíram que o menino Jesus, finalmente, tinha nascido mas a mãe teve a certeza que naquele momento, Sebastião tinha apanhado aqueles que nos tinham trazido até aqui, e todos eles iriam pagar pelas tremendas maldades que tinham cometido.

13 comentários:

Anónimo disse...

Garrinchas, na sua ingenuidade, é uma ternura. Sebastião, mesmo em sonho, segue a ingenuidade de Garrinchas... Nem no Natal podemos aspirar a tanto... A senhora de preto de olhos vendados, está tal e qual - não vê nada!
Garrinchas inspirou-te.
Uma boa prenda de Natal.
Um grande abraço da
Isabel

capitão disse...

Ms neste pais a ficção não tem nada a ver com a alidade. Aqui eles viverão felizes e contentes casarão as suas filhas com outros membros de outros governos e o Sebastião ouvirá as notícias do telejornal, como ouve o que se passa na Casa dos Segredos.

Anónimo disse...

O Garrinchas transporta-me até à minha infância, onde tudo era mais simples e mais místico. Hoje, não sei se cada um pagará pelos seus atos... mas continuo a ser uma sonhadora:) Por isso mesmo, Feliz Natal!
Aquele abraço
Conceição

ferrreira disse...

Todos desejamos que os nossos sonhos bons se tornem realidade... Mas o Sebastião foi muito exigente! É sonhar demasiado alto, infelizmente... Até porque a tal senhora de preto deve continuar com a balança mal aferida...
Excelente conto... infeliz realidade... E enquanto todos os Sebastiões deste país continuarem a ser mansos, a corja vai continuar a rir.
Feliz Natal a todos*, e como optimista que sou, havemos de conseguir melhor.
Grande abraço!!

* - exclui-se a corja que nos tem desgovernado... Vão para o raio que os parta!!!

Anónimo disse...

Apesar de tudo o que acontece... ainda me apetece sonhar... preciso de sonhar...
Um abraço
Bom Natal

carlos ponte disse...

Havia um saudoso treinador de futebol que antes de o ser tinha sido um fabuloso jogador que marcava inolvidáveis golos de cabeça que em dada altura da qualificação para o campeonato do mundo do México disse: "Deixem-me sonhar". O resto é história. Talvez que o Sebastião se lembrasse dele.
Um abraço Isabel. Obrigado pelas tuas palavras.

carlos ponte disse...

Talvez que não seja possível viver eternamente em ficção e aí... De qualquer modo respeitemos o sonho do Sebastião como respeitamos o do José Torres.
Obrigado pelas suas palavras Capitão.

carlos ponte disse...

Olá Conceição!
Lá dizia o outro: "Sempre que um homem sonha o mundo pula e avança..."
Obrigado pelas tuas palavras.
Um abraço.

carlos ponte disse...

Olá Zé Ferreira!
Apreciei as tuas palavras. Um ótimo comentário a um continho sem pretensões (que as não podia ter nem que quisesse, claro).
Meu grande amigo, obrigado e um abraço.

carlos ponte disse...

E fazes bem anónimo (acho que deves ser anónima e não anónimo mas teimas em não assinar). Fazes bem em continuar a sonhar.
Um abraço.

Helena disse...

Um belo conto de Natal que, por má sorte, se revela de grande atualidade! O sonho do Sebastião é o desejo de todos os portugueses decentes. Mas, nos dias que vão correndo, parece-me mais verosímil a multiplicação desgovernada de velhos Garrinchas do que a concretização do sonho do Sebastião. É urgente deixar de sonhar e contribuir ativamente para ganhar essa causa.

Helena disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Excelente conto! Foi um belo presente de Natal.
Obrigada!
Rita Arantes