28 junho 2007

A NOVA HISTÓRIA ORAL

O dia estava a romper quando saí do metro. Estava a tossir e a espirrar, tinha os olhos a doer-me, os joelhos tremiam-me, estava com mais fome que uma loba, e tinha exactamente oito cêntimos no bolso. Pouco me importava. A minha história tinha aumentado de onze mil palavras novinhas em folha, e nesse momento aposto que não havia um único Presidente do Conselho de Administração em toda a Nova Iorque tão feliz como eu.
Joseph Mitchell, O Segredo de Joe Gould

Lá para o Outono o Museu da Pessoa, com sede na Universidade do Minho, abrirá oficialmente a Lifepedia, uma ferramenta virtual, espécie de Wikipedia, que permitirá recolher histórias e testemunhos de vida de todos aqueles que tiverem vontade de as partilhar. Neste momento cerca de uma dezena de funcionários, desde profissionais de design, a editores e investigadores trabalham a tempo inteiro numa estrutura museológica peculiar que já compilou mais de 500 testemunhos por todo o país. Jorge Rocha, responsável por este projecto, revelou que o objectivo primordial é reforçar auto-estimas e incentivar laços colectivos e identidades culturais. Em sua opinião o projecto será um êxito pois todos gostam de ser autores, vendo-se isso pelo fenómeno dos blogues que, por vezes, nem são lidos, mas há em cada um de nós uma vontade enorme de criar que nos impele a continuar.
Esta ferramenta virtual, que deverá funcionar nos moldes do sistema de registo e password, permitirá o registo on-line das histórias individuais. Neste momento estão já registadas conversas com tanoeiros, alfaiates, tecedeiras e uma panóplia infindável de rostos e vozes que corporizam a preservação das recordações. Ainda segundo Jorge Rocha, a criação de uma ferramenta deste tipo reveste-se da maior importância visto a tradição oral que no passado se desenvolvia em volta da lareira onde se transmitiam histórias, princípios e valores estar hoje, definitivamente, arredada para junto da televisão.

Confesso que a ideia é sedutora e auguro-lhe grandes sucessos mas, reconheçamos, não é virgem. Na primeira metade do século passado, Joe Gould, passou a maior parte da vida no cumprimento da tarefa de escrever a História Oral. Gould costumava contar que numa manhã do Verão de 1917, era ele repórter há cerca de um ano no Evening Mail, lhe veio à mente a ideia da História Oral. Imediatamente, abandonou o emprego e começou a escrever. Desde essa manhã fatídica a História Oral tem sido a minha corda e o meu cadafalso, a minha cama e a minha escrivaninha, a minha mulher e a minha amásia a minha ferida e o sal em cima dela, o meu whisky e a minha aspirina, o meu refúgio e a minha salvação. É a única coisa que ainda tem alguma importância para mim. Tudo o resto é lixo.
Tal como o pai e o avô, Joe Gould diplomou-se por Harvard. Quando os limites da sua terra se lhe tornaram sufocantes, Joe partiu para a grande cidade. Na minha cidade natal nunca me senti em casa. Em Nova Iorque, especialmente em Greenwich Village, no meio dos marados, dos marginais, dos tísicos, os que já foram alguém, os que podiam ter sido, os que queriam ser, os que nunca hão-de ser e os sabe Deus o quê, sempre me senti em casa.
É pelos locais mais sórdidos da Nova Iorque do princípio do século passado – nos dias húmidos o bar cheira que nem um estábulo e nas vizinhanças corre a lenda de que os hortaliceiros que passam na rua têm de conter os cavalos para eles lá não entrarem –, atravessando os anos loucos e a grande depressão que Joseph Mitchell seguirá o boémio Joe Gould e nos contará a sua extraordinária história. Desde a singular tarefa de escrever a história da humanidade até à luta diária pela sobrevivência – a maior parte das pessoas vive numa base semanal ou mensal. Eu vivo na base do dia-a-dia, e há dias em que vivo numa base hora-a-hora –, tomaremos conhecimento da invulgar história desta personagem extravagante e do seu desconcertante segredo.

3 comentários:

a d´almeida nunes disse...

Excelente tema.
Quantas vezes não nos interrogamos, nós os que teimam em escrever nos blogues, se vale a pena fazê-lo.
Aliás, esta questão já se me coloca há mais de uma década, isto só para falar de participação/partilha na internet. A verdade, que, pelos vistos está a confirmar-se cada dia que avançamos no tempo, e no digital particularmente, é que gostamos de anotar o que vamos descobrindo, o que vamos sonhando, o que achamos que devemos partilhar com os outros.
Daí que eu concorde com esta iniciativa de trabalhar no sentido duma história oral (que acabará por ser oral, escrita, imagem, enfim digital em pleno).
Tudo isto dá que pensar. Onde estão as balizas para marcarmos os nossos "golos" e para os retermos na nossa própria imaginação e conseguirmos agarrar-nos a essas "estacas" quando sentimos que caminhamos à deriva?
Alô!
Terra chama ???
brrrr...
Uma abraço amigo
António

olho_azul disse...

Passei por cá para desejar um bom fim de semana!
Um abraço

Citadino Kane disse...

Um bom início de semana meu irmão.
Abraços,
Pedro