19 setembro 2006

PASSADO À MEDIDA DO PRESENTE

Félix Ventura vive na baixa de Luanda num velho casarão colonial rodeado de retratos circunspectos e estantes a abarrotar de livros. Quando bebé foi deixado numa caixa de cartão, acondicionado entre vários exemplares d’A Relíquia – Eça foi o meu primeiro berço, costumava, orgulhosamente, dizer – junto da porta de um alfarrabista que, após a revolução, deixaria casa e livros ao filho adoptivo e trocaria a instabilidade de Luanda pela calma de Lisboa.
Diariamente o albino Félix Ventura – Branco, eu?! Não, não! Sou negro. Sou negro puro. Sou um autóctone. Não está a ver que sou negro?... – espiolhava o jornal. Quando encontrava alguma notícia que lhe interessava, recortava-a e arquivava-a. Guardava, religiosamente, centenas de pastas com recortes e centenas de filmes.
Em Angola emerge, por estes tempos, uma conjunto de pessoas cujo venturoso presente não está em consonância com o inconfessável passado.
O albino era uma pessoa atenta aos novos tempos e viu nesta discrepância uma oportunidade de negócio - Dê aos seus filhos um passado melhor. O material que laboriosamente guardava, ajudá-lo-á a construir passados para todos aqueles que reclamarem os seus serviços. Há os que necessitam de sangue nobre na sua árvore genealógica, há os que querem limpar o sangue das mãos e há até aqueles que querem trocar o seu passado porque, simplesmente, é inacreditável – quero trocar esta história inverosímil, a história da minha vida, por outra simples e sólida. A história de um homem comum. Eu dou-lhe uma verdade impossível, você dá-me uma mentira vulgar e convincente, aceita? E fá-lo-á com tal verosimilhança que os próprios se convencerão do seu passado glorioso e sem mácula.
Tudo isto é-nos dado a conhecer por intermédio de uma osga – uma osga, sim, mas de uma espécie muito rara. Está a ver estas listras? Trata-se de uma osga-tigre ou osga-tigrada, um animal tímido, ainda pouco estudado. Os primeiros exemplares foram descobertos há meia dúzia de anos na Namíbia – que, desde sempre, viveu na casa de Félix Ventura. Tal como Félix, também a osga experimenta sérias dificuldades em presença da luz, daí, talvez, a afinidade que se vai criando entre ambos. Por vezes sonha com a sua vida anterior quando era um humano.
N’O Vendedor de Passados, numa linguagem escorreita, José Eduardo Agualusa palmilha os caminhos que o jovem país percorreu após a independência.
Um caminho enxameado de escolhos que tolhem a caminhada.

1 comentário:

Tozé Franco disse...

Gosto muito de josé Eduardo Agualusa que descobri nas crónicas da Pública (revista do Público).
Um abraço.