Na admirável obra “Memórias de Adriano”, Margarite Yourcenar, apresenta-nos um imperador próximo da gente comum, atacado pelas mesmas fraquezas que atormentam a gente anónima. Tendo recebido imensos territórios do seu antecessor Trajano, Adriano, suspende a sanha conquistadora do antepassado e dedica parte da sua vida a solidificar as conquistas recentes.
Adriano é um amante da cultura, discreto e reflexivo. Não muito longe já, do fim da vida, numa carta escrita ao jovem Marco, Adriano confidencia-lhe: "Foi em Roma, durante as longas refeições oficiais, que me aconteceu pensar nas origens relativamente recentes do nosso luxo, nesse povo de cultivadores económicos e soldados frugais, alimentados de alho e cevada, subitamente emporcalhados pela conquista nas cozinhas da Ásia, tragando aquelas comidas complicadas com uma rusticidade de camponeses dominados por fome canina".
Socorro-me desta obra para comentar os negócios escandalosos que nos vão entrando pelas portas adentro, pontualmente, às oito da noite de todo o santo dia. Não necessitamos, sequer, das capacidades meditativas de Adriano para concluir que, tal como os romanos, também nós, muito recentemente ainda, não passávamos de uns cultivadores económicos. Quem não se lembra daquela célebre fotografia do “ganhão”, enquadrado por uma paisagem bucólica, deixando ver as botas cardadas e com a sola já furada? As nossas recentes “conquistas” nas “cozinhas” da União, ao tempo Comunidade, emporcalhou muita gente que não estaria preparada para aquela súbita entrada de “comida”. O resultado é o que já sabemos. Espero, esperamos todos, que todos estes exageros dêem pelo menos para uma reflexão profunda sobre o papel que a todos e a cada um de nós está reservado sob pena de vermos uma matilha de cães esfaimados dizimar todo um rebanho dócil e triste.
Este texto, publicado inicialmente em 4 de Dezembro p.p., foi premiado no sorumbático como comentário ao texto de Alfredo Barroso, Perguntas assassinas.
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