20 agosto 2006

NÃO FOI POR INVEJA QUE FIQUEI CHORANDO...

Um dia, se for a Marraquexe, reconstituirei – tentarei fazê-lo, pelo menos – os passos de Elias Canetti. Hei-de ir ao mercado de camelos junto do muro de Babel-Khemis, hei-de visitar os souks e apreciar as especiarias e os artigos de couro e os tapetes e as ourivesarias e os artigos de cobre e as lãs coloridas e os cestos e as cordas e os mil cheiros e as mil cores e os mil pregões, hei-de ir a Mellah e a Berrima, hei-de procurar os contadores de histórias e os escribas, hei-de apreciar os contrastes da grande praça Djema el Fna no centro da cidade e hei-de escolher um pão, o melhor que a fila de mulheres tenha para vender. Por fim, rumarei a Sul em direcção às montanhas do Atlas procurando Aghmat, a cerca de uma trintena de quilómetros de Marraquexe, para visitar a tumba de Muhammad ibn 'Abbad al-Mu'tamid, o Rei-Poeta de Sevilha para lhe prestar a minha homenagem.
Al-Mu'tamid, filho do rei Al-Mutadid, nasceu em Beja em 1040. Aos treze anos era já governador de Silves, nomeado após ter comandado uma expedição militar que esmagou uma rebelião na cidade. É nesta altura que conhece Ibn Ammar um poeta que terá nascido na actual Estômbar. Entre os dois cresce, então, uma profunda relação de amizade que, por vezes, se especula ser de natureza homossexual. O seu pai tentará, enquanto viver, afastar o filho daquele que pensa ser uma companhia tão nefasta quanto perigosa para o seu herdeiro.
Com a morte do pai em 1069, Al-Mu'tamid sucede-lhe como rei da taifa de Sevilha. Uma das primeiras decisões que toma é nomear Ibn Ammar, o seu grande amigo, vizir do reino. Este ajuda-o na expansão das suas possessões com a conquista de Múrcia, praça que lhe será entregue para governar.
Por esta altura, a corte de Al-Mu'tamid, fervilha de arte e ciência. Lá se reunem, entre outros, o astrónomo Al-Zarqali, o geógrafo Al-Bakri e os poetas Ibn Hamdis, Ibn Al-Labbana e Ibn Zaydun.
Ibn Ammar, além de brilhante estratego, excelente diplomata e magnífico poeta, era excepcionalmente ambicioso. Muitas vezes conspirou contra o seu senhor, usando, por vezes, a poesia para o ridicularizar, mas a amizade que Al-Mu'tamid sentia pelo seu vizir era tão profunda que, em vez de ficar magoado com a mensagem dos poemas, preferia destacar as qualidades poéticas dos escritos do amigo. Porém, anos depois, acabaria por mandar prendê-lo e, num acesso de raiva, entraria na sua cela e tirar-lhe-ia a vida.
Por esta altura, o Rei Afonso VI de Leão e Castela pressionava o Al Andaluz, chegando a conquistar Toledo em 1085. Vendo que o seu reino começava a correr perigo e privado das qualidades guerreiras e negociais do amigo morto, Al-Mu'tamid, ainda que relutantemente, pede ajuda Yusuf ibn Tashufin, emir dos Almorávidas do norte de África, para lutar contra os Cristãos. O emir dos Almorávidas cede ao seu pedido e envia tropas para a Península que o ajudarão a derrotar Afonso VI, na Batalha de Zalaca, em 1086.
Quatro anos mais tarde, o Rei Cristão volta a investir contra o Reinos Islâmicos e Al-Mu'tamid volta a pedir ajuda. Ibn Tashufin torna a vir em seu auxílio mas desta vez não se limitará a prestar ajuda a Al-Mu'tamid.
Após ter repelido os Cristãos, Ibn Tashufin conquista os reinos islâmicos da Península. Al-Mu'Tamid é feito prisioneiro e desterrado para Aghmat. Por lá passará, penosamente, em cativeiro, os últimos quatro anos da sua vida.
É por esta altura que escreve o mais belo poema que um homem privado de liberdade pode escrever:

Chorei quando vi passar
livre, sobre mim voando,
o bando de cortiçóis.
Nem grades nem grilhetas os detinham.
Não foi por inveja que fiquei chorando...
apenas nostalgia de ser livre,
sem sentir dispersas
as próprias entranhas
e sem filhos mortos
que ao pranto me obrigassem.
Felizes aves:
nunca se apartaram do bando,
não sentem a ausência da família,
nem passam a noite,
como eu, de coração inquieto
ao ranger da porta da cela
ou ao chiar do ferrolho.
Tais sobressaltos não são apenas meus,
fazem parte da humana condição.
Desejo vivamente só a morte.
Outro, quem sabe, se sujeitaria
à vida com grilhetas, mas eu não!
Alá, proteja os cortiçóis
e também as suas crias
pois às minhas, desventuradamente,
abandonaram-nas água e sombra.

4 comentários:

Tozé Franco disse...

Excelente poema.
Um abraço.

P.S. Já "regressei" da Galiza encontrando-me no Minho.Estou quase em Viana da Foz do Minho.

carlos ponte disse...

Da foz do Lima queria o Tozé dizer. Espero que chegue ainda a tempo da Senhora da Agonia.
Divirta-se na minha terra.
Um abraço,
Carlos Ponte

Tozé Franco disse...

Peço desculpa pelo erro.
Viana do Castelo tem uma das zonas históricas mais bonitas que conheço.
Um abraço.

Anónimo disse...

Carlos,
Não foi por inveja que fiquei emocionado... É lindo o poema e o intróito muito elucidativo.
Abraços,
Pedro