29 janeiro 2007

E O TIBET: COMO VAI?

Depois de alguns avanços e outros tantos recuos – coisa de somenos ao que nos dizem os organizadores de eventos do Palácio das Necessidades – o primeiro-ministro parece que lá partirá amanhã para a China. Na bagagem leva, com toda a certeza, um sem número de dossiers de natureza económica e comercial e, eventualmente, uma ou outra treta politicamente correcta.
Se lhe sobrasse algum do seu precioso tempo, nestes seis dias em que visita a China, gostaria que indagasse junto das autoridades do país, da sorte que terá cabido às duas monjas tibetanas, Kyzom e Yangdöl, que há 10 anos fugiram do sua pátria ocupada, atravessando, a pé, os Himalaias.
Esta viagem épica é-nos contada por Philippe Broussard no seu livro Os Rebeldes do Himalaia. A prisão das monjas por terem o "atrevimento" de clamarem por liberdade para a sua pátria, as sevícias sofridas no degredo, as privações na travessia dos Himalaias, os problemas com as autoridades Nepalesas, o pânico constante de serem descobertas e enviadas de novo para o cárcere, até à almejada liberdade em Dharamsala, no norte da Índia, junto do dalai-lama, também ele lá exilado.
Gostava de saber como está Ursinho que pouco depois de chegar a Dharamsala tomou a decisão de voltar ao Tibete. Mesmo depois de todos os sacrifícios para lá chegar, não deixou de experimentar um certo sentimento de culpa por saber que a verdadeira luta só podia ser travada do outro lado das montanhas, no seu país. Mesmo arriscando-se a ser de novo presa e torturada, regressou ao Tibete.
Broussard termina o seu livro dizendo: "... ignoro onde se encontra hoje Ursinho, a rebelde de Dharamsala. Sem dúvida numa cela em Gutsa, em Trisam, em Drapchi, culpada de ter querido o impossível: a liberdade".
Mesmo que ao nosso primeiro-ministro sobrasse algum do seu precioso tempo não averiguaria, certamente, a sorte das monjas. Os objectivos da sua viagem são outros e, de qualquer modo, quem se interessa pela luta de um povo, ainda que íntegro, mas que ninguém conhece?

13 janeiro 2007

MÁS-LÍNGUAS

Há alguns anos abriu em Viana um simpático cafezinho a que foi dado o nome de Amarillo. Recordo-me que a primeira vez que vi o nome gravado nas vitrinas me lembrei da Amarillo das revistas e dos filmes de cowboys e dos duelos na rua principal debaixo do sol impiedoso do meio-dia. Isto, numa altura que uma certa família ainda não tinha trazido má fama ao Texas.
Apesar de por vezes a música parecer uma Techno Parade, gosto de, uma vez por outra, sentar-me um pouco e ler o JN ou então o Público que a casa todos os dias põe à disposição dos seus clientes. Ontem, ao fim da tarde, fui ao Amarillo. Peguei no Notícias que estava livre e sentei-me a uma mesa. A música não incomodava – Techno não pode ser sempre – abri o jornal e comecei a ler. Na mesa ao lado, duas criaturas, professoras pelo que se depreendia das suas palavras, mostravam-se chocadas com a atitude de uma terceira, pelos vistos, das suas relações. Trejeito daqui, esgar dali, má-língua dacolá, lá iam apunhalando a amiga ausente.
Eu, ouvinte acidental de toda aquela conversa, lembrei-me de uma anedota que o meu amigo Aires me tinha contado algumas horas antes:
Na altura do Natal dois clítoris passeavam por uma rua da baixa admirando as montras decoradas para a quadra. Então diz um para o outro:
- Ouvi dizer que não consegues atingir o orgasmo?
- Olha filha, más-línguas! Más-línguas, é o que é!
Voltando às professoras. Alguém dizia, algures, que é a conversa das mulheres que faz girar o mundo. Começo a pensar que talvez tenha razão. Depois de um chorrilho de frases incompreensíveis – não porque ciciassem mas, simplesmente, porque falavam em simultâneo –, finalmente, uma começou a dizer algo que teve o condão de emudecer a amiga:
- Então não queres saber que foi para Paris nas férias do Natal e só veio ontem? Quase duas semanas depois de as aulas terem começado? E depois admiram-se da ministra fazer o que faz!
- Uma falta de responsabilidade intolerável! – gania a outra.
Não havia condições para ler. O tempo em que, estudante universitário no Porto, conseguia estudar no meio do ambiente atroador do Café Cenáculo, já passou há décadas. Agora, sem silêncio, tenho dificuldade em concentrar-me na leitura. Dobrei o jornal, voltei a colocá-lo no cesto e saí.
Pela rua ia pensando na conversa que desencaminhou a minha leitura: foi de férias e voltou quase duas semanas após o início das aulas!
Não, só pode ser má-língua das invejosas das amigas!

11 janeiro 2007

BEM-VINDO A CASA!

O Presidente da República já aterrou na Índia. Com o seu séquito – esperemos que não de Diogos Cães engalanados – o país regressa ao Oriente. Antes ainda de partir, o Presidente lembrou que esta viagem tinha, apenas, motivações políticas e económicas e não seria nunca uma peregrinação pelas memórias do império. Fez muito bem em proferir tais palavras – nem se esperaria outra coisa de um Presidente da República de um país soberano e civilizado que parte para uma visita a outro estado soberano e civilizado –, mas no mais recôndito do seu ser ter-lhe-á vindo à memória a extraordinária aventura protagonizada pelos portugueses de quinhentos. Disso não tenho dúvidas.
A mim, que o vejo partir, vem-me à memória uma admirável crónica de um atento espectador da alma lusa: Fernando Alves. Há 10 anos, fá-los-á lá mais para Setembro, o cronista foi também à Índia. De uma crónica dessa vagem respiguei o seguinte excerto:
A ventoinha está sempre a rodar, no restaurante do Hotel Venite, na Rua 31 de Janeiro em Pangim. Há uma velha rabeca pendurada na parede e há também um retrato do Sagrado Coração de Jesus. […] Alguém escreveu num português sem mácula, em letras toscas, na parede mais larga da sala: «A nossa especialidade é galinha assada com batatas fritas». Há vinhos de distintas proveniências, há o inevitável xarope Mateus Rosé, mas o melhor é pedir Kingfisher muito fresca e esperar que a ventoinha não pare de rodar. […] a varanda do restaurante do Hotel Venite, em Pangim, não dando, é certo, para o Rio Mandovi, não respondendo aos desejos dos que procuram Forte Aguada e as mais belas praias do mundo, não dando senão para os telhados da 31 de Janeiro onde pousam os corvos negros da Índia, dá, todavia, para o mais íntimo da andarilha alma portuguesa. […] Sentado a essa varanda de Pangim escutei uma inesperada canção de Né Ladeiras que o jovem Raghu Gadhi foi pôr a girar num leitor de cassetes quando percebeu uma lusitana melancolia nos meus olhos. E foi nessa varanda de Pangim que vislumbrei o símbolo do Sporting pintado na parede da loja de Bento Miguel Fernandes. Bento Fernandes havia de me abrir os braços e as histórias e havia de me mostrar as fotografias com Eusébio, Toni, Damas e outros veteranos, que há pouco mais de um ano foram jogar futebol a Goa. Ao contar as tardes de petiscos portugueses no Clube Vasco da Gama, o senhor Bento abraçou-me como se eu fosse do Sporting e mostrou-me os retratos autografados de Eusébio e Toni como se eles fossem do Sporting, que é o mais popular clube do mundo, em Goa. E eu percebi que no abraço emocionado de Bento Fernandes, na alegria de poder falar uma língua diariamente agredida por ministros e outros doutores, ele dizia Sporting como se dissesse uma secreta ideia de pátria comum. E nesse fim de tarde na rua 31 de Janeiro em Pangim, durante uma hora, eu fui, com orgulho, do Sporting.”
Uma última nota: nos antípodas de Pangim, do imenso Brasil chegam-me também sinais da alma lusitana. O Pedro Nelito e os amigos estão compondo um fado. Querido amigo – permita-me que o trate desta forma – bem-vindo a casa!

28 dezembro 2006

NÃO PRECISA BEBER CHAMPANHE...


RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)


Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

27 dezembro 2006

THIS IS AMERICA!

Da América continuam a chegar novas que têm, ainda, o condão de nos surpreender. Final do último Super Bowl, um “desporto” esquisito e, pelo menos para mim, intragável e incompreensível, em que uma cambada de embuçados tenta por todos os meios atropelar outra cáfila dos mesmos embuçados. Os ianques, a avaliar pelos níveis de audiência televisiva, são doidos por essa trapalhada. No intervalo da última final, como ia dizendo, actuou a cantora Janet Jackson e o cantor Justin Timberland. Durante a performance, talvez num trejeito mais arrojado, a mama direita da mulata libertou-se do espartilho e mostrou-se ao mundo. Ao que me dizem, a puritana América tê-la-á visto por menos do que um segundo, mas este foi tempo suficiente para que a estação de televisão que transmitiu o espectáculo, a CBS, suponho, tenha sido multada em cerca de meio milhão de dólares.
Ah América, és capaz do melhor e do pior.

SABEDORIA DE CASERNA

Hoje, num dos telejornais da hora do almoço, ouvi uma afirmação extraordinária. Extraordinária por duas razões: em primeiro lugar porque foi proferida por um elemento – graduado, suponho – da GNR e em segundo porque passados todas estas décadas e todos estes milhares de mortos e centenas de milhar de estropiados lá concluíram que a culpa das mortes na estrada era da má educação dos automobilistas. Mas, note-se que esta opinião é apenas daquele militar, o governo continua a dizer que os portugueses – e as portuguesas, como eles gostam de dizer, especialmente quando querem pedir algo, por exemplo, um voto – são pessoas educadas, sensatas, inteligentes, ajuizadas, enfim um chorrilho de imbecilidades que qualquer mortal sabe que soam a falso. Deixem-se disso senhores governantes, “ataquem” já as criancinhas desde o pré-escolar se não vamos continuar a ter gerações de cretinos ao volante. E agora já não temos a desculpa das estradas más e do parque automóvel envelhecido. Ambos estão ao nível do que existe no primeiro mundo. A senhora ministra da educação que, de repente, emudeceu, que se deixe de trapalhadas e que olhe para a situação desastrosa do primeiro ciclo, que é, não tenhamos dúvidas disso, a etapa mais importante da escolaridade do indivíduo. Mas por favor, rodeie-se de pessoas que saibam o que deve ser feito.

24 dezembro 2006

FELIZ NATAL


Amanhã, dia de Natal, fará nove meses que atravessei a fronteira. Durante este tempo conheci alguns amigos, visitei outros e, acima de tudo, diverti-me bastante. Para todos os amigos e visitas cá de casa - Marco Aurélio, o primeiro a dar sinal de vida, Pedro Nelito, António, Tozé Franco, Alda Maia, Magui, Joel, São Ponte, Xico Rocha, Helena Guerreiro, Alex Manzi, Andrea, Isadora Lis, Bruno Vieira, José Marques, Manuel Neves, Jofre Alves, Raposa Velha, Cazento, Mikas, Quintanilha, Armanda, Professorinha, Teresa David e João Moutinho - um feliz natal
Empanturrem-se de batatas, abarrotem-se de bacalhau, atestem-se de um bom verdinho, recheiem-se de doçarias e lambuzem-se de amor.

18 dezembro 2006

JOSÉ ESTALINE: NÃO NOS ESQUECEREMOS!

…Estaline […] levanta-se, beija a namorada na face, canta uma canção, ajuda a filha a fazer os trabalhos de casa e depois manda matar 40 mil pessoas…

Entrevista de Simon Sebag Montefiore ao semanário Sol, 26.Nov.2006


Ióssif Vissariónovitch Djugashvili ou, mais prosaicamente, José Estaline, nasceu na cidade Georgiana de Gori, faz hoje precisamente 128 anos. O mundo, viria a sabê-lo mais tarde, passaria bem sem ele, mas na realidade não teve essa sorte.
O pequeno Ióssif, filho de trabalhadores com poucos recursos, teve uma infância difícil. Chegou a frequentar um seminário na capital da Geórgia, Tbilisi, satisfazendo os anseios da mãe, mas cedo se começou a envolver em actividades subversivas, contestando o regime czarista. Estas acções revolucionárias levá-lo-iam à prisão. Uma vez em liberdade aliar-se-ia a Vladímir Ilitch Uliânov, Lenine, ajudando a arquitectar a Revolução Russa de 1917. A sua ascensão dentro do partido foi meteórica. A astúcia de Estaline, que lhe permitiria manter-se no poder até ao dia da sua morte, começava aí a revelar-se.
Antes da Revolução dirigiu o Pravada, jornal oficial do Partido e, em 1922, é eleito Secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Dois anos depois, após a morte de Lenine, ascende à chefia do governo Russo, cargo que desempenharia com mão de ferro e sem piedade até ao fim dos seus dias, a 5 de Março de 1953.
Neste quarto de século terá feito da Rússia uma super potência mas à custa de muito sofrimento, muitos crimes e muitas mortes. Tantas que os historiadores não conseguem, sequer, pôr-se de acordo. Num recente documento do Conselho da Europa, que visa perpetuar a lembrança de todos os crimes contra a humanidade pode ler-se: "Convém não esquecer os crimes do estalinismo, cujas vítimas estão estimadas em 100 milhões de mortos. O regime estalinista recorria a todas as formas de execução de civis: utilizava o gás ou o veneno, ou então fazia o necessário para que as vítimas morressem de fome. Centenas de milhar de pessoas foram expulsas para os confins da Rússia e povoações de todas as nações foram deslocadas. Nas prisões e gulags, milhares de prisioneiros políticos foram vítimas de uma feroz repressão".
Podem começar a levantar-se vozes que tentem reabilitar o nome deste déspota sanguinário, pode até aparecer um ou outro que nos lembre os afazeres domésticos do ditador, que nada nem ninguém conseguirá calar o murmúrio ensurdecedor dos milhões de inocentes que pereceram às suas mãos.

PS. fui "coagido" pelo Pedro Nelito a escrever este post, que, diga-se em abono da verdade, nasceu de um mal entendido. Uma completíssima lista de algozes pode ser consultada aqui.

12 dezembro 2006

SESSÃO DE POESIA

"Tendo problemas de flatulência [...] de vez em quando descuidava-se [...] em cerimónias oficiais, levando-me a acender, de imediato, um cigarro para disfarçar o odor."
in, Eu, Carolina, Carolina Salgado

Consigo imaginar o ambiente numa das famosas sessões de declamação de poesia em que o homem diz participar. Será cada verso cada peido. E os circunstantes, embevecidos, sem notarem sequer aquela atmosfera espessa e pesada, ovacionam-no no fim. O declamante curva-se perante a assistência e aproveita o ruído para largar mais um, agora ruidoso, que o ambiente permite-o.

05 dezembro 2006

A MINHA HOMENAGEM A FIDEL

Enquanto convalesce da arreliadora avaria do intestino, Fidel é informado que o seu amigo Morales está já em viagem para o confortar e lhe oferecer um bolo de coca. O comandante não o diz, mas no íntimo reza a todas as santinhas pedindo-lhes que despenhem o avião e façam o índio e o bolo desaparecerem nas profundezas do triângulo das Bermudas ou nas brumas do mar dos sargaços.
Pelos vistos as santinhas não ouvem os hereges e, por isso, o andino aterrou em Havana são e salvo com a sua picaresca oferenda.
Anteontem, enquanto escrevia o texto anterior, sobre o bolo de coca que Dom Evo ofereceu ao seu guru, lembrei-me de Juan Manuel de Prada. Fidel, não desmerecendo da ascendência galega, sempre foi apreciador da boa mesa mas abomina bolos. Bolos em geral e bolos de coca em particular. De modo que, depois de ler a notícia da visita do índio, por solidariedade com o velho comandante, decidi procurar um livro de Juan de Prada e deliciar-me com um determinado texto da obra. É a minha homenagem ao cubano nesta hora difícil.
Embora o texto seja de fino recorte literário, cogitei longamente acerca da pertinência de o trazer a lume. Encorajado por algumas coisas que vou lendo na blogosfera, e mesmo correndo o risco de estarrecer algumas mentes mais sensíveis, decidi trazê-lo.



Vou uma vez por ano a Cuba, para fumar com Fidel Castro uns bons charutos e lhe contar uma ou outra anedota picante. Fidel é um bocado manhoso, um pouco paquidérmico e barbudo demais. No fim da visita, dá-me umas palmadas nas costas com aquelas suas mãos de velho sapo, e leva-me para uma saleta decorada com pouco gosto, com pretensões a lupanar das Caraíbas, onde me esperam meia dúzia de pequenas cubanas, risonhas e partidárias do regime castrista. Fidel diz-me que escolha uma e eu decido-me, para o não o deixar mal visto, pela mais rechonchuda. Fidel faz estalar os dedos, ordenando às outras que se retirem; ele faz o mesmo, após cofiar as barbas de patriarca outonal. E eu, ficando ali a sós com a cubanita, pergunto-lhe:
- Como te chamas?
- Gertrudes.
As cubanas são mulheres com uma certa vocação para as curvas, de uma carnalidade que contrasta com os seus nomes, muito ásperos para o gosto ocidental. Na Gertrudes, concretamente, sublinharei o seu riso mulato, os seus braços sedentários e a sua estatura de menina que não cresceu. Vamos à praia (Fidel tem residência de Verão à beira-mar, para espiar com a luneta os viajantes das jangadas que naufragam antes de acostar à Florida) e eu pego-lhe na mão , sentindo entre os meus dedos o calor afável e hospitaleiro das raças mestiças. Fodemos em silêncio, em cima da areia (talvez a luneta de Fidel nos esteja a examinar), com a noite toda a derramar-se sobre nós. Gertrudes tem uma cona avantajada, crioula, e sobre ela gravita o resto do seu corpo, uma cona que, tal como a manigua(1), pode enredar com as suas plantas o viajante descuidado. Vou desbravando o caminho que me há-de levar até ao fundo de Gertrudes, enquanto ela me dá instruções num espanhol rudimentar, fulgurante de americanismos, que me transmite ainda maior tesão. A cona de Gertrudes, liberta por fim de moitas pesarosas sabe-me a ananás e a licores tropicais. Contemplo a cona de Gertrudes recitando-lhe fragmentos de Paradiso, o romance de Lezama Lima que na adolescência me deslumbrou pelas suas conexões insólitas, embora nunca conseguisse entendê-lo completamente (mas a literatura não é para entender, basta que acaricie o ouvido, a alma ou os colhões). Gertrudes confessa-me a meio do coito que Paradiso é a sua obra preferida, e demonstra-mo citando passagens pertinentes. Fidel, homem de pouca leitura, deve estar a alucinar a cores, perante tamanho alarde de erudição literária, caso se não tenha cansado de nos espiar com a luneta. Os meus gostos, em geral, coincidem com os de Gertrudes, e este consenso facilita um orgasmo uníssono, cubano, quase telúrico. Gertrudes, que é um pouco desabrida, vem-se, maldizendo Guillermo Cabrera Infante(2), que considera um James Joyce para mulatos com úlcera gástrica. Acho que é um exagero.

Conos, Juan Manuel de Prada



(1) Expressão da língua nativa taina; bosque tropical pantanoso e impenetrável. (N.E.)
(2) Cabrera Infante, n. em 1929, é sobretudo conhecido pelo seu feérico romance Três Tristes Tigres, aventura da linguagem cubana em que o humor desempenha importante papel. A alusão deve-se aqui ao facto de o escritor se ter exilado de Cuba em 1965. (N.E.)

02 dezembro 2006

UMA FATIA PARA ESQUECER

A rapaziada Andina continua a surpreender-nos: Evo Morales, chegou há dois dias a Cuba para assistir ao dia das forças armadas cubanas e comemorar o aniversário do comandante – na realidade fez anos a 13 de Agosto mas um arreliador desarranjo intestinal não aconselhou festejos – e, a uma pergunta de um jornalista sobre a prenda para o enfermo, respondeu: “como prometi, eis o bolo de cocaína!
Estou em crer que o dito bolo fará habitualmente parte da dieta alimentar de Morales. Assim se compreende como não liga patavina aos protestos que vão tomando conta das ruas do seu país: depois da sobremesa toma os protestos por aplausos.

30 novembro 2006

O DESCOBRIDOR







Pelos vistos desde pequeno que tem uma fixação:
lançar-se à descoberta.
Só nos resta desejar que os ventos estejam de feição.



Descobridor

Um pai gosta de se rever no filho,
não nos defeitos, mas naquilo que,
dentro de uma óptica de adulto, é
considerado qualidade ou virtude. É verdade
que os defeitos, quando em miniaturas,
podem ter graça. O mau génio
dum rapazito “promete”, não
raro, um forte carácter
macho para quando ele for um
homem, e isso tranquiliza
e tem graça. Mas é inegável
que as virtudes brilham e
lisonjeiam mais.


Quando o meu querido
fedelho me anunciou,
arvorando como podia a
solenidade de que os seus
dez anos eram capazes, que
queria ir para descobridor,
eu senti-me surpreso
e, logo, vaidoso. Até que enfim
que aparecia alguém, nas quatro
últimas gerações da família
Soares Picoto, que se propunha
descobrir, que forcejava
por se dedicar à descoberta de
algo
.
– Mas descobrir o quê?
perguntei ao Alvarito.
– Novas terras!, disse o pequeno.


Expliquei-lhe que a grandeza
dos portugueses como
navegadores e descobridores
era um facto incontroverso, mas que
hoje estava tudo descoberto.
O Alvarito ficou pensativo,
Depois, olhou para mim
e disse, meio desencantado:
- Então posso ser engenheiro…

Alexandre O’Neill

21 novembro 2006

A 10 DIAS DO 1.º DE DEZEMBRO

Há uma dúzia de anos a Assembleia-geral da ONU instituiu o dia 21 de Novembro como Dia Mundial da Televisão. Os estados membros foram convidados a comemorar o dia e instados a promoverem, a nível mundial, a troca de programas sobre temas como a paz, a segurança e o desenvolvimento económico e social, reforçando, deste modo, o intercâmbio cultural.
Doze anos volvidos e podemos “contemplar” em toda a sua extensão o fiasco das intenções da ONU.
Hoje, 21 de Novembro, comemora-se o dia Mundial da Televisão. Se a ONU tivesse adiado a comemoração por mais dez dias, tomaria um aparelho, subiria ao 1.º andar e jogá-lo-ia pela janela. Comemoraria, desse modo, a Restauração da Independência.
Como assim não é o meu protesto vai deixar a televisão muda durante todo este dia!

19 novembro 2006

HUMOR NEGRO

Há dois dias a imprensa noticiou as conclusões de um estudo conduzido por investigadores americanos que conseguiram provar – vá lá saber-se como – que participar regularmente na missa aumenta a longevidade.
O estudo foi desenvolvido à roda das fartas mesas de Pitsburg, o que, em termos científicos, é pobre e pode até considerar-se, em certos casos, contraproducente: fosse feito no Lesoto, no Botswana ou na Suazilândia e concluiriam que para alguns nem a missa lhes vale.

PS: esperança de vida, dados de 2005: LESOTO, 34,47 anos; BOTSWANA, 33,87 anos; SUAZILÂNDIA, 33,22 anos...

17 novembro 2006

"EFEITO ATATURK" EM CAMPO MAIOR

O amigo João Moutinho perguntava-me, com alguma ironia, diga-se: Então não há mais Ataturk’s. Dei-lhe uma resposta de acordo com a pergunta mas, pensando melhor, talvez possa dizer-se mais alguma coisa sobre o assunto. Não propriamente sobre o jovem turco, mas sobre uma outra ridicularia, essa bem mais próxima de nós: os grandes portugueses.
A RTP está neste momento a cumprir a “nobre” tarefa de seleccionar os 10 mais famosos portugueses de onde sairá o maior cá do burgo. Confesso que não assisti a nenhum dos programas – penso que teria sido mais do que um – onde se tratou desse tema mas imagino também que não terei perdido grande coisa. O formato não é novo, nem é nosso, foi importado. Noutros países, também aqui mais “adiantados” que nós, já apuraram os dez mais, estando por isso em condições de, a qualquer momento, fazerem soar as trombetas. Por cá dizem-me que para Janeiro – de 5007, espero. Dei uma olhadela à página do programa e verifiquei que os organizadores não terão levado em linha de conta o efeito Ataturk. Se o tivessem feito estaria entre o Manoel de Oliveira, cineasta e o Manuel dos Santos, toureiro, o empresário – ou direi antes o filantropo – Manuel Rui Azinhais Nabeiro. Se os empregados, os amigos da pesca, os afilhados, os amigos da caça, os compadres, os amigos da sueca e pelo menos sete oitavos de Campo Maior se dispuseram a telefonar para votar no benfeitor, o Manuel Rui será eleito ao arrepio de todas as perscrutações, tão só porque a RTP, na sua soberba, não se dignou beber dos ensinamentos deste blog, desconhecendo, por isso, o que, em situações como esta, o efeito Ataturk pode fazer.

Bom, acontecerá o mesmo que noutros países, por exemplo nos Estados Unidos da América. Sabem por acaso quem é a 6.ª personalidade mais importante da história desse grande país? Nem mais: George W. Bush.

13 novembro 2006

DESAFIO DAS MANIAS

Fui arrebanhado para participar neste desafio e não tive qualquer possibilidade de fuga.
O desafio consta do seguinte:
Cada bloguista participante tem de enunciar cinco manias suas, hábitos muito pessoais que os diferenciem do comum dos mortais. E além de dar ao público conhecimento dessas particularidades, tem de escolher cinco outros bloguistas para entrarem, igualmente, no jogo, não se esquecendo de deixar nos respectivos blogs aviso do "recrutamento". Ademais, cada participante deve reproduzir este "regulamento" no seu blog.

As minhas manias:
1- Mania de ser optimista;
2- Mania de chegar a horas;
3- Mania de cultivar a "má-língua";
4- Mania que tenho poucas manias;
5- Mania que tenho sempre razão.

Os meus convidados:
- Blog da Mikas
- Fantasias
- Escola Revisitada
- Histórias e Sabores
- Lusíadas

PS: confesso que tenho bastantes dúvidas acerca daquela última mania mas fui coagido a escrevê-la.

INÉS ALLENDE

Para trás ficou Cuzco, coroada pela fortaleza sagrada […], sob um céu azul. Ao sair da cidade, mesmo debaixo dos olhos do governador, do seu séquito, do bispo e da […] cidade que se despedia de nós, Pedro chamou-me para o seu lado com uma voz clara e destemida.
- Junte-se a mim doña Inês Suárez! – exclamou, e quando passei à frente dos seus soldados e oficiais, colocando o meu cavalo ao lado do seu, acrescentou em voz baixa: - Vamos para o Chile, Inês da minha alma…

Isabel Allende, Inês da Minha Alma


O mais recente livro de Isabel Allende, Inês da minha alma, relata a prodigiosa aventura da conquista do Chile.
Naqueles tempos, já não havia lugar para as mais nobres façanhas naquela Europa, corrupta, envelhecida, dilacerada por conspirações políticas […]. O futuro estava do outro lado do Atlântico.
É neste mundo novo que Pedro de Valdivia, contra tudo o que seria de esperar, se lança à conquista do Chile, mesmo sabendo que se conseguisse sobreviver ao deserto do Atacama, o lugar mais inóspito da Terra, dificilmente escaparia aos aguerridos índios Mapuche. Mas Pedro estava convencido que o Chile era o local ideal, bem longe dos cortesãos da Ciudad de los Reyes, para fundar uma sociedade justa baseada no trabalho árduo e na lavoura da terra, sem a riqueza fácil das minas e o recurso à escravatura. De modo que se lança à aventura.
A História nunca foi pródiga no tratamento dado às mulheres e, no séc. XVI, isso era ainda mais evidente, de modo Pedro de Valdivia “arcaria” com todos os louros de tal façanha.
Isabel Allende descobriu que uma mulher, Inês Suárez, nascida numa obscura localidade Andaluza teria tido um papel importantíssimo nessa epopeia. Investigou em todos os locais possíveis e legou-nos a extraordinária história dessa mulher.
Conhecendo a obra da autora, e em especial Paula, não podemos deixar de reparar nas imensas afinidades existentes entre as duas mulheres de modo que por vezes somos levados a pensar que a narradora é, afinal, Inês Allende ou, eventualmente, Isabel Suárez.

12 novembro 2006

VLADIMIR PALAHNUIK, 1919, JACK PALANCE, 2006

Jack Palance, nascido a 18 de Fevereiro de 1919 em Lattimer, no estado da Pensilvânia, no seio de uma modesta família de emigrantes ucranianos, morreu na sexta-feira aos 87 anos de idade, na sua casa de Montecito, na Califórnia, ao que dizem, de causas naturais.
Jack Palance, nascido Vladimir Palahnuik, antes de iniciar a carreira de actor, foi pugilista – Jack Brazzo – e militar.
Os duros vão desaparecendo. Hollywood começa a ser tomada por frouxos.

09 novembro 2006

UM PAI NATAL PARA DON HUGUITO

Hugo Chavez só ouviu falar de Portugal porque em tempos alguém lhe sugeriu que uma fotografia que o mostrava a conversar com um sujeito bem parecido numa qualquer sala de espera de um aeroporto, poderia, eventualmente, servir para mostrar ao mundo que era um líder que se dava com gente de bem. Mas este arremedo de estadista não sabe o que se passa por cá, caso contrário saberia que, tal como não se pode decretar o fim de uma crise, também não se pode proibir por decreto a visita do Pai Natal. E foi isto, pasme-se, o que ele fez: mandou publicar um decreto que proíbe o uso de imagens ou bonecos do Pai Natal, pinheiros enfeitados e, até, botas e meias vermelhas, em todos os edifícios públicos venezuelanos.
E eu a pensar que já nada mais me surpreenderia…

Socorro-me do trabalho poético de um seu colega dos antípodas para dedicar um bom Natal a Don Huguito, com o desejo que o Pai Natal lhe traga um IPod para ouvir os discursos do ianque e o Trópico de Câncer do Henry Miller para aplacar a ira sempre que esta se manifeste. Só peço ao Pai Natal que não lhe traga nada daquilo que ele lhe pediu.

PAI NATAL

Pai Natal, vem, por favor!
Traz zincos prás escolas,
Traz giz, traz quadros,
Cadernos, lápis e livros!
Traz carteiras e armários,
E professores e alegria!

Pai Natal, vem, por favor!
Traz a chuva e verdura,
E frutas, milho e arroz
Nos campos dos nossos pais!
Harmonia entre adultos,
P’ra nós a certeza da paz.

Xanana Gusmão

07 novembro 2006

O EFEITO ATATÜRK

Dealbar de novo milénio.
Numa altura de temor e pânico, exacerbado não sei por quem e consubstanciado no Bug do ano 2000, uma revista estrangeira, da qual não me ocorre o nome, mas com posição na praça e difusão mundial, lembrou-se, no encerramento de um milénio, eleger a personalidade que nos últimos mil anos mais se tenha destacado: “O Homem do Milénio”.
Na era da aldeia global – o Bug foi, afinal, um fiasco – o modo de votação não poderia ser outro: pela Internet.
A votação lá começou e, uns tempos depois, quando a organização se apercebeu da personalidade que iria sair vencedora tratou de, sub-repticiamente, anular a eleição: Atatürk, literalmente, o pai dos Turcos, estava prestes a tornar-se o homem do milénio.
Ninguém duvida da importância que Mustafa Kemal (1881-1938) o Atatürk, tem para a moderna Turquia da qual foi o grande impulsionador mas, daí até ser a personalidade mundial mais importante dos últimos mil anos, digamos que seria necessária muita força de vontade para se aceitar.
Mas então como é que tudo aconteceu? Muito fácil. A revista, que, como já se disse, tinha – e tem, penso – difusão mundial, também chega à Turquia. Ora, algum Otomano se lembrou de encorajar os seus concidadãos a votarem no “Pai” e eles não se fizeram rogados. E, assim, uma iniciativa que no resto do mundo tinha despertado pouco interesse tornou-se, na Turquia, quase numa questão de honra nacional. Setenta milhões de Turcos correram, então, para o computador. O final da história adivinha-se.
Tudo isto, a propósito da ridícula ideia de escolher as Novas Sete Maravilhas do Mundo.
No dia sete de Julho do ano que vem – ainda pensei que o sete era o do George Best, mas afinal não – o mundo ficará a conhecer as novas maravilhas num espectáculo que será transmitido pela televisão para todo o mundo a partir do Estádio da Luz em Lisboa. E pronto, a partir desse dia o romantismo aliado às sete maravilhas desaparecerá. Mas, escolham o que escolherem, nunca conseguirão destronar o Colosso de Rodes, nem os Jardins Suspensos da Babilónia, nem o Farol de Alexandria, nem a Estátua de Zeus, nem o Templo Ártemis, nem o Mausoléu de Halicarnasso. Muito menos as Pirâmides de Gisé.
Os promotores desta ridicularia, liderados pelo suiço Bernard Weber, à qual um antigo director geral da UNESCO emprestou o nome, estão a cair no mesmo erro que há seis anos destruiu a luminosa ideia da revista americana. Ao não terem em conta o “efeito Atatürk” as novas Sete Maravilhas do Mundo serão tudo menos maravilhas ou, sendo-o, não serão, com toda a certeza, do mundo.
A votação já começou e, soube um dia destes, que já começaram também as “jogadas de bastidores”. Os Indianos, alarmados pelo fraco lugar ocupado pelo Taj Mahal, começaram a acorrer em força à votação e já o posicionaram num lugar elegível. Espera-se a resposta dos chineses.
S. Marino, Lichtenstein, Andorra e Belize não têm qualquer hipótese.